Blog
Warburg e Renascimentos
Blog
Warburg e Renascimentos
“Biscoitos Antropológicos”: moldes para confeitos do século XVIII
As sobremesas são para a mesa o que os concertos barrocos representam para a música: uma arte delicada.
Isabel Allende
Desserts are to the table what Baroque concertos are to music: a delicate art.
Isabel Allende
O caminho mais evidente para estabelecer relações entre arte e alimentação talvez seja observar a representação de alimentos por meio da pintura, como uma modalidade da natureza-morta, gênero surgido ao final do século XVI em obras de artistas como Caravaggio ou Sánchez Cotán (Griego, 1992). No entanto, uma aproximação entre arte e alimentação não está, certamente, apenas na representação pictórica autônoma de artigos alimentícios, mas também nas cenas de comer, ceias e banquetes – que contam com longa tradição em diferentes épocas e civilizações (Da Costa, 2021).
Porém, a temática alimentação & arte se abre para imagens, dos séculos XV ao XVIII europeus, que representam o Sentido do Paladar, entre os Cinco Sentidos (Jütte, 2005; Nordenfalk, 1985); e a Gula, entre os Sete Pecados Capitais (Flandrin, 2008; Quellier, 2011). Tais possibilidades muitas vezes se entrelaçam. Outro caminho, de certo modo oposto, é a representação da fome, que nos leva a obras como “Os comedores de batata” (1885) de Van Gogh ou à série “Retirantes” (1944) de Portinari.
Entretanto, para o campo da gastronomia, tratar de alimentação & arte diz respeito, entre outras coisas, à sofisticada competência para a elaboração gustativa e para a apresentação do prato aos olhos do convidado. Nas linhas que se seguem, gostaria de me aproximar um pouco mais desse último aspecto. Em que medida o alimento se torna, ele mesmo, uma obra de arte? Ou, dito de outra forma, em que situações uma massa comestível pode se tornar matéria prima plástica adequada para ser aplicada a uma técnica artística, por exemplo, a escultura?
No Museu da Inconfidência de Ouro Preto, Minas Gerais, encontram-se expostas algumas fôrmas de marcar doces. São relevos negativos feitos em pedra, datados do século XVIII. Dois desses moldes apresentam símbolos do poder religioso, um deles contendo a heráldica do quinto bispo de Mariana, Dom Frei Cipriano de São José (fig.1); e outro traz uma representação de Nossa Senhora da Conceição (fig.2). Também há uma fôrma com figuras de caráter civil, com a imagem de um homem e de uma mulher (fig. 3). Imaginamos que esta coleção de fôrmas de marcar doces seja apenas a pequena amostra de um universo muito maior de objetos de mesmo tipo. Há notícias de moldes semelhantes em reserva técnica do Museu de Arte Sacra de São Paulo, as quais ainda não pudemos verificar.
Com relação às fôrmas de marcar doce de caráter religioso do Museu da Inconfidência, com as insígnias do bispo de Mariana, vejamos a descrição do acervo online
Fôrma de marcar doces, de formato octogonal, esculpida em pedra-sabão esculpida, tendo na face frontal, representação in cavo e invertida das Armas de Dom Frei Cipriano de São José, 5º Bispo da Diocese de Mariana. Marcas/Inscrições Desenho trabalhado in cavo e invertido: Armas de Dom Frei Cipriano de São José, 5º Bispo da Diocese de Mariana.
Fonte: Museu da Inconfidência.
The most evident path to establishing connections between art and food is perhaps to observe the representation of food through painting, as a form of still life—a genre that emerged at the end of the 16th century in the works of artists such as Caravaggio or Sánchez Cotán (Griego, 1992). However, the relationship between art and food is certainly not limited to the autonomous pictorial representation of edible items, but also encompasses scenes of eating, suppers, and banquets—which have a long tradition across different periods and civilizations (Da Costa, 2021).
Moreover, the theme of food & art expands to images from 15th- to 18th-century Europe that depict the Sense of Taste among the Five Senses (Jütte, 2005; Nordenfalk, 1985), and Gluttony among the Seven Deadly Sins (Flandrin, 2008; Quellier, 2011). These possibilities often intertwine. Another path, somewhat opposing, is the representation of hunger, leading us to works such as The Potato Eaters (1885) by Van Gogh or the Retirantes series (1944) by Portinari.
However, for the field of gastronomy, addressing food & art involves, among other things, the refined skill in flavor development and in the visual presentation of the dish to the guest. In the lines that follow, I would like to focus more closely on this latter aspect. To what extent can food itself become a work of art? Or, to put it differently, in what situations can an edible mass become a suitable plastic material to be applied in an artistic technique, such as sculpture?
At the Museum of the Inconfidência in Ouro Preto, Minas Gerais, there are several molds used for shaping sweets on display. These are negative stone reliefs, dated to the 18th century. Two of these molds bear symbols of religious authority, one featuring the heraldry of the fifth bishop of Mariana, Dom Frei Cipriano de São José (fig. 1); and another depicting Our Lady of the Immaculate Conception (fig. 2). There is also a mold with secular imagery, showing a man and a woman (fig. 3). We imagine that this collection of mold for sweets represents only a small sample of a much larger universe of similar objects. There are reports of comparable molds held in the technical reserve of the Museum of Sacred Art of São Paulo, which we have not yet been able to examine.
Regarding the religious molds from the Museum of the Inconfidência, bearing the insignias of the bishop of Mariana, let us consider the description from the online collection:
Mold for sweets, octagonal in shape, carved from soapstone, featuring on its front face a concave and reversed representation of the coat of arms of Dom Frei Cipriano de São José, 5th Bishop of the Diocese of Mariana. Marks/ Inscriptions: Design carved in concave and reversed relief: Coat of arms of Dom Frei Cipriano de São José, 5th Bishop of the Diocese of Mariana.
Source: Museu da Inconfidência.
Figura 1 - Armas de Dom Frei Cipriano de São José, 5º Bispo de Mariana. Fôrma de marcar doces. Autor Não identificado. Segunda metade do século XVIII. Altura (cm) 29.9 Largura (cm) 25.7 Profundidade (cm) 4.2 Material Pedra-sabão. Número de registro 330. Museu da Inconfidência. Ouro Preto, Minas Gerais. Fonte: Museu da Inconfidência.
E sobre o molde com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, temos:
Fôrma de marcar doces (?) ou Molde de Relevo Religioso (?), em pedra-sabão esculpida, com representação de Nossa Senhora da Conceição, in-cavo. Figura feminina, de pé, com cabelos longos e esvoaçantes, cabeça voltada à esquerda e cercada por aureóla ornada com nove estrelas aparentes. Traja vestido longo sob manto esvoaçante, com panejamento bem marcado. Apresenta-se com os braços direcionados à sua direita e mãos em posição de oração. Nossa Senhora encontra-se apoiada sobre o globo terrestre, este circundado por serpente, ladeado por dois anjos seminus envoltos por tecidos e apoiados sobre nuvens. Sobre cada um dos anjos, tarjas com as seguintes inscrições, parcialmente legíveis: à direita: ICTA PVLC. ES MARIA; à esquerda: MACVL. ORIG NON EST. Esta última encimada por querubim apoiado sobre nuvem. O anjo localizado à direita de Nossa Senhora segura nas mãos uma lança apontada para a cabeça da serpente; enquanto que o outro anjo carrega um ramalhete em sua mão esquerda. No verso, nove símbolos, de formatos diversos, incavos, tais como fivela, a letra E, placas e ornatos pingentes. Marcas/Inscrições Inscrições no corpo da representação, parcialmente legíveis: à direita: ICTA PVLC. ES MARIA; à esquerda: MACVL. ORIG NON EST."
Fonte: Museu da Inconfidência.
And regarding the mold featuring the image of Our Lady of the Immaculate Conception, we have:
Mold for sweets (?) or Religious Relief Mold (?), carved from soapstone, depicting Our Lady of the Immaculate Conception in concave relief. The female figure is shown standing, with long, flowing hair, her head turned to the left and surrounded by a halo adorned with nine visible stars. She wears a long dress beneath a billowing mantle, with well-defined drapery. Her arms are directed to her right, and her hands are positioned in prayer. Our Lady stands upon a globe encircled by a serpent, flanked by two semi-nude angels draped in fabric and supported by clouds. Above each angel are banners with partially legible inscriptions: to the right, “ICTA PVLC. ES MARIA”; to the left, “MACVL. ORIG NON EST.” Above the latter, there is a cherub resting on a cloud. The angel on the right side of Our Lady holds a spear pointed at the serpent’s head, while the other angel carries a bouquet in his left hand. On the reverse side, there are nine concave symbols of various shapes, such as a buckle, the letter E, plaques, and hanging ornaments. Marks/Inscriptions: Inscriptions on the body of the relief, partially legible: to the right, “ICTA PVLC. ES MARIA”; to the left, “MACVL. ORIG NON EST.”
Source: Museu da Inconfidência.
Figura 2 – Nossa Senhora da Conceição. Fôrma de marcar doce. Autor Não identificado. Segunda metade do século XVIII. Altura 16.4 (cm) Largura 11.4 (cm) Profundidade 2.8 (cm) Material Pedra-sabão. Número de registro 1475 . Museu da Inconfidência. Ouro Preto, Minas Gerais. Fonte: Museu da Inconfidência.
O uso da pedra sabão, a esteatita, como se sabe, foi bastante importante para o desenvolvimento da escultura em Minas Gerais durante o século XVIII e início do XIX. A esteatita, contudo, já era utilizada igualmente desde o século XVIII, como atestam inventários post mortem, para recipientes e panelas. É conhecida justamente por seu nome popular: “pedra de panela”. São até hoje muito apreciadas tais panelas de pedra, por suas qualidades e especiais propriedades no cozimento e no sabor que proporcionam aos alimentos, assim como por sua adequação à conservação do calor e também do frescor da água e outras bebidas e alimentos. Ao mesmo tempo em que recipientes de pedra-sabão eram usados para preparar e conter alimentos, água e outros líquidos no uso cotidiano, era a matéria-prima dos escultores para realizar suas obras monumentais.
Não deixa de ser sugestiva a hipótese de que, se a mesma matéria-prima usada para as forminhas de marcar doces, na culinária e também para refrescar a água – uma finalidade prosaica e cotidiana – fosse aplicada a uma intenção artística, abriria inúmeras possibilidades de interpretação simbólica. Mesmo considerando a diversidade do uso de pedras aplicadas às obras de arte e monumentos, parece possível que aqueles que usavam a pedra de panela em suas casas estabeleceriam facilmente um elo, um sentido de continuidade entre seus objetos cotidianos e os monumentos. No entanto, com relação às fôrmas em pedra sabão para decorar confeitos, podemos dar um passo adiante e pensá-las como miniaturas monumentalizadas, pois não se destinavam a doces preparados para dias comuns, mas sim para solenes celebrações.
Bastaria mencionar uma breve, porém significativa, alusão aos alimentos como parte das celebrações religiosas, no relato impresso em Lisboa em 1734, narrando em detalhes a importante festa ocorrida no ano anterior, quando do retorno da Imagem de Nossa Senhora do Pilar e do Divino Sacramento, os quais haviam permanecido na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Ouro Preto durante as reformas da Matriz do Pilar. A crônica intitulada Triunfo Eucharistico exemplar da Christandade Lusitana em publica exaltação da Fé na Solemne Trasladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para hum novo Templo da Senhora do Pilar em Villa Rica (...) por Simam Ferreira Machado” cita:
Em todas as noites destes dias se continuaram ao mesmo Senhor [André de Melo e Castro, 4º Conde das Galveias, Governador da Província de Minas Gerais] excelentes serenatas de boas músicas, e bem vestidas figuras nas casas onde estava no Ouro Preto. Nas mesmas em todos os dias deu o dito Senhor esplendidíssimo banquete a todas as pessoas nobres, e de distinção, seculares e Eclesiásticas com aquela liberalidade de ânimo, que por toda parte publica a fama [grifo nosso] (Ávila, 2006, p. 120-121).”
Sem desconsiderar a importância das fôrmas para doces com temas religiosos, gostaria de tratar aqui particularmente do molde duplo contendo as figuras de um homem e uma mulher. Neste caso, apostamos que se trate de uma destinação não propriamente religiosa, mas civil e até certo ponto, pode-se dizer, laica. Poderiam se tratar de “figuras de convite”, muito usadas no século XVIII em azulejaria, na entrada de edificações monumentais. Vejamos, no entanto, a descrição dessa peça pela documentação do próprio Museu da Inconfidência.
Fôrma para marcar doces (?) confeccionada em pedra-sabão entalhada e esculpida, de formato retangular, contendo representação de duas figuras humanas, em separado e em relevo, emolduradas por friso chanfrado, tendo, na parte interna, cercadura motivos decorativos em meio círculo. À direita, figura feminina representando dama (possivelmente de origem holandesa) e, à esquerda, figura masculina representando cavalheiro. Figura feminina em posição frontal, de pé, com cabeça encimada por ornato de flores, trajando vestido longo com decote em "U", de mangas curtas, e saia com armação, tendo, presa ao pescoço, gargantilha de contas. Pés posicionados lateralmente com sapatos de salto; braço esquerdo levemente flexionado, com a mão voltada para trás; braço direito disposto lateralmente, segurando à mão uma rosa. À esquerda do observador, figura masculina representando um cavalheiro, em posição frontal, de pé, trajando farda militar, com bicórnio ornado com flores ao alto, casaca, blusa com botões aparentes, calça justa e, nos pés, posicionados lateralmente, botas. Braço esquerdo flexionado, com a mão posicionada na altura da barriga; braço direito flexionado, segurando à mão um espadim. Face posterior do objeto lisa. Fonte: Museu da Inconfidência.
The use of soapstone, or steatite, as is well known, was highly significant for the development of sculpture in Minas Gerais during the 18th and early 19th centuries. Steatite, however, had already been in use since the 18th century, as attested by post-mortem inventories, for making containers and cooking pots. It is commonly known by its popular name: “pan stone” (pedra de panela). These stone pots are still highly valued today for their qualities and special properties in cooking and the flavor they impart to food, as well as for their ability to retain heat and keep water and other foods and beverages cool.
While soapstone vessels were used to prepare and hold food, water, and other liquids in daily life, the same material served as the raw material for sculptors creating monumental works. It is thus suggestive to consider the hypothesis that if the same material used for mold for sweets, in cooking and for cooling water—a mundane and everyday purpose—were to be employed with artistic intent, it would open up countless possibilities for symbolic interpretation. Even acknowledging the diversity of stones used in artworks and monuments, it seems plausible that those who used pedra de panela in their homes could readily establish a link—a sense of continuity—between their everyday objects and public monuments.
Nonetheless, when it comes to the soapstone molds used for decorating sweets, we can go a step further and consider them as miniature monumentalizations, for they were not intended for confections made on ordinary days, but rather for solemn celebrations.
A brief yet meaningful reference to food as part of religious festivities can be found in a printed account published in Lisbon in 1734, which narrates in detail the important celebration held the previous year, on the occasion of the return of the image of Our Lady of Pilar and of the Blessed Sacrament, which had remained in the Church of Our Lady of the Rosary of Ouro Preto during the renovation of the Mother Church of Pilar. The chronicle, titled Triunfo Eucharistico exemplar da Christandade Lusitana em publica exaltação da Fé na Solemne Trasladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para hum novo Templo da Senhora do Pilar em Villa Rica (...) por Simam Ferreira Machado, states:
On each night of those days, excellent serenades with fine music and well-dressed figures were offered to Our Lordship [André de Melo e Castro, 4th Count of Galveias, Governor of the Province of Minas Gerais] at the houses where he was staying in Ouro Preto. During the day, this same Lord hosted splendid banquets for all noble and distinguished persons, both secular and ecclesiastical, with such generosity of spirit that his fame is widely proclaimed everywhere [emphasis ours] (Ávila, 2006, pp. 120–121).
Without disregarding the importance of the mold for sweets with religious themes, I would like to focus here particularly on the double mold featuring the figures of a man and a woman. In this case, we suggest that its intended use was not strictly religious, but rather civil and, to a certain extent, one could say, secular. These may have been “invitation figures” (figuras de convite), which were commonly used in the 18th century in tilework at the entrances of monumental buildings. Let us now consider the description of this piece as recorded in the documentation of the Museum of the Inconfidência.
Mold for sweets (?) made of carved and sculpted soapstone, rectangular in shape, featuring the relief representation of two human figures, separately framed and in relief, bordered by a beveled frieze with a semicircular decorative motif along the inner edge. On the right, a female figure representing a lady (possibly of Dutch origin); on the left, a male figure representing a gentleman. The female figure is shown standing, front-facing, with a flower ornament atop her head, wearing a long dress with a U-shaped neckline, short sleeves, and a structured skirt. Around her neck is a beaded choker. Her feet are turned sideways, wearing heeled shoes; her left arm is slightly bent, with the hand turned back; her right arm is extended to the side, holding a rose in her hand. To the left of the viewer, the male figure represents a gentleman, also shown standing and front-facing, dressed in a military uniform with a bicorne hat adorned with flowers, a frock coat, a buttoned vest, and tight trousers, with boots on his feet turned sideways. His left arm is bent, with the hand resting at stomach height; his right arm is also bent, holding a small sword (espadim). The back of the object is flat.
Source: Museu da Inconfidência.
Figura 3 – Homem e Mulher. Fôrma de marcar doce. Autor Não identificado. Segunda metade do século XVIII. Altura 13.9 (cm) 19.2 Largura (cm) 4.3 Profundidade (cm) Material Pedra-sabão. Número de registro 1762. Museu da Inconfidência. Ouro Preto, Minas Gerais. Fonte: Museu da Inconfidência.
Se a pedra-sabão foi a matéria-prima usada para conceber estas pequenas esculturas, como matrizes em negativo, baixíssimos relevos para se modelar esculturas de açúcar, podemos pensar também no açúcar como uma matéria-prima escultórica. De acordo com a classificação do museu, essas fôrmas para doces são sintomaticamente entendidas como “equipamento de artista/artesão”. Tudo isso nos conduz a aspectos mais amplos do sistema da economia açucareira e aos diversos significados culturais do açúcar, a partir do século XVII proveniente em enormes quantidades da Colônia Brasil em direção à Metrópole.
O tal “ouro branco em pó” foi tratado como uma matéria prima valiosa, seu uso controlado por pesagem em miligramas, conforme os Regimentos dos artífices dedicados à culinária, confeiteiros e pasteleiros, comparáveis socialmente ao estatuto de outros artesãos, como entalhadores ou marceneiros. Porém, pela preciosidade do açúcar, aproximavam-se dos artífices do ouro e da prata.
No Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa (1926), datado de 1576, (uma compilação escrita de leis consuetudinárias vigentes desde o século XV que de modo longevo se estenderam para os territórios colonizados) estavam as normas para exercer o ofício de confeiteiros, assim como a definição do ofício e os tipos de doces que deverá fazer para ser considerado um mestre confeiteiro. Determinava-se detalhadamente os confeitos para o exame do ofício, assim como as regras a serem seguidas pelos aprendizes. Havia uma forte preocupação com relação à matéria-prima essencial da confeitaria: o açúcar. Seu valor estava relacionado à brancura: quanto mais alvo fosse, maior sua nobreza para o uso na arte da confeitaria. A compra do açúcar por parte dos confeiteiros esteve bastante regulamentada, com severas punições no caso de desvios e contrabandos (Langhans, 1943). Vejamos alguns dos artigos do Regimento dos Confeiteiros:
21 - Que todo confeiteiro que nesta cidade comprar açúcar venha dar conta disso aos juizes e escrivão e declare na verdade os preços e condições que o compra e a cópia das caixas que são e os juízes o repartirão pelos oficiais (...) 22 – Madam que nenhum confeiteiro seja ousado levar açúcar algum a sua logea sem ser comprado, porque muitas vezes se acha o levarem a suas logeas que tem fora da rua caluniosamente dizendo que vai por conta de seu dono (...) 24 – Mandam para as pessoas pobres que não têm possibilidade para comprar maiores pesos de açúcar, alfenim ou outra obra de açúcar, que os confeiteiros além dos pesos que por ordenação e regimento lhe são dados (...) serão avisados que não vendam o açúcar ou obra dele as onças por maior preço de o que vendem por arretéis (...) (1926)
O Livro dos Regimentos, compilado no século XVI, como vimos, porém cuja vigência perdurou até o início do século XIX com certas modificações, refletia em sua textualidade desde o momento que antecede à produção açucareira proveniente do Brasil Colônia. O açúcar se tornaria, a partir do século XVII, a matéria prima valiosa, essência da colonização e da exploração das terras brasileiras, em canaviais e engenhos movidos pela força humana, especialmente de populações escravizadas, deslocadas da África, numa das diásporas mais violentas da História.
O livro publicado em 1702, Frutas do Brasil: numa nova, e ascética Monarchia, consagrada à Santíssima Senhora do Rosário, escrito por António do Rosário, segundo Byron (2009, p.47): “(...) exalta as qualidades das frutas brasileiras pelas quais alegoriza frutos espirituais. Trata-se de um discurso alegórico com o fim de difundir a fé católica no Novo Mundo.” Aqui, se os abacaxis eram os reis, ocupando o primeiro capítulo do livro; a cana de açúcar constituía o segundo capítulo como “a rainha deste vasto e doce Império do Brasil”, “mãe do açúcar”, “Deusa da doçura”, “rainha que dá mais a Portugal do que a Índia, no açúcar que se faz da cana, como diamantes e pérolas, que assim se chamam os açúcares finos, tem bem enriquecido a Coroa e Reino de Portugal”. Ou ainda “a cana de açúcar que é a fonte da doçura da alma que ama a Deus e deseja neste triste e miserável vale de lágrimas lograr uma doce e regalada vida (...)”, alertando porém os perigos que habitam o açúcar: “O sensual diz que o seu pecado é doce (Homini fornicario omnis panis dulcis (...)”. Os doces eram também metáforas do amor divino em contraste com a amargura dos sofrimentos do mundo (Rosário, 1702, p.50-59).
Assim, as fôrmas para moldar confeitos mostram doces como coisas de comer, coisas feitas de açúcar, tais quais esculturas para serem apreciadas e ilusoriamente tocadas em sua materialidade sólida, elaborados com extremo refinamento e insinuantes volumes, o que os aproximava da ourivesaria ou de esculturas em miniatura. Porém destinados a ser depois consumidos pela boca, saboreados pelo paladar e capazes de nutrir o corpo de energias vibrantes, causando prazer e culpa.
O engenho de açúcar é metáfora do Juízo Universal, “como se vê na moenda de um engenho, a conta dos pecados que cometemos e dos benefícios que recebemos”. As fornalhas e caldeiras nos engenhos são vistas como o inferno; e a purificação e branqueamento do açúcar, como purgatório. Os açúcares mais brancos e finos “são os maiores Santos da Igreja Católica, o açúcar redondo os timoratos; o açúcar retumbado, os convertidos e o açúcar mascavado, sei eu e se lhe chamar retamente, não o afronto, que terá maior preço que muito açúcar branco e quem será? São Benedito, gloria dos pretos (...)”. E mais ainda: “(...) como o engenho do Brasil é doce e amargoso; doce pelo açúcar, amargoso pelo trabalho com que se faz; bem se pode admitir entre as parábolas do dia do Juízo a parábola do engenho do Brasil (...)” (Rosário, 1702, 74-100)
Estamos propondo, portanto, uma história das fôrmas para marcar doces a partir de bases metodológicas em diálogo com a história da alimentação e com os estudos de cultura material, compreendendo-as como parte da dinâmica econômica da produção açucareira, das riquezas provenientes da exploração colonial e como exaltação mística nos termos propostos por Antônio do Rosário em seu livro “Frutas do Brasil” (1702), com particular atenção às páginas dedicadas à cana-de açúcar. No entanto, nos importa também compreender tanto a doçaria portuguesa e aquela produzida no Brasil, como resultante do fazer dos confeiteiros e suas corporações de ofício e, em contrapartida, o caráter predominantemente feminino que tal tarefa assumiu na Colônia, das mulheres confeiteiras ou cozinheiras escravizadas, quituteiras “de ganho” que entoavam seus cantos para vendas ambulantes. Atuavam, mulheres doceiras, sob diferentes formas de exploração do trabalho, a serviço de “seus senhores”, nobres, governantes, religiosos, preparando “banquete a todas as pessoas nobres, e de distinção, seculares e Eclesiásticas”, para usar as palavras do Triunfo Eucarístico de 1733. Seus doces eram também pequenas esculturas feitas do açúcar.
Na introdução ao Dicionário do Doceiro Brasileiro, Raul Lody (2010, p. 14-15, 22) nos explica que “o uso do açúcar marca um lugar de poder, inclusive o uso de muito açúcar”. Para ele, “a feitura artesanal do doce é essencialmente uma realização estética”. E ainda: “É necessário tempo, dedicação quase religiosa, para experimentar e buscar o sabor e a beleza do doce. Pois, inicialmente, o doce é para ser visto e desejado, e tem que ser bonito”. Mais adiante alerta sobre os doces como identidade, fazendo uma alusão indireta às marcas que contém:
Tanto quanto um brasão, uma marca heráldica como a torre de um castelo ou dois leões e, ainda, uma armadura guarnecida de flor-de-lis, eram os bolos inventados nos engenhos de açúcar verdadeiras assinaturas culinárias, expressando o desejo de ter uma marca, um sentimento de pertença a um lugar ou uma família (Lody, 2010, p. 23)”
Os doces do cotidiano, as sobremesas de “todos os dias”, ainda que para as mesas de poucos, não se confundiam com os doces dos tempos especiais. “É próprio para o que é doce e para se fazer um doce, ou comê-lo, destinar um tempo de devotamento. Um tempo que vai muito além do relógio”. O bolo é uma das modalidades de doce que correspondem a tempos especiais, de celebração – bolo de noivado, de casamento, de visita para a mulher que pariu, de aniversário, bolo de Natal (Lody, 2010, p. 22).
Não caberia, no limite dessas linhas, rever a história dos livros de receitas em Portugal e sobre sua presença nas bibliotecas (as livrarias) do período colonial no Brasil. Desde o Livro de cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, o manuscrito dos séculos XV ou XVI da Biblioteca Nacional de Nápoles, o livro Arte da Cozinha de Domingos Rodrigues do século XVII ao Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha de Lucas Rigaud do século XVIII seria possível traçar uma linha sobre a presença de receitas de doces com aspecto especial para dias de festa. No entanto, considerado tanto o sentido de conservar receitas tradicionais da culinária portuguesa quanto seu reflexo da longa adaptação aos ingredientes e técnicas brasileiras, observemos um livro cuja datação é bastante posterior a nossas fôrmas de doces do Museu da Inconfidência. Trata-se do Dicionário do Doceiro Brasileiro de 1892, compilado pelo Dr. Antonio José de Souza Rego (2010, p. 496). Aqui, a partir do açúcar se constroem formas ilusórias, como esculturas: “Podem-se imitar os peixes da China salpicando com açúcar em pó vermelho: imitar-se da mesma maneira, com açúcar, pulverizado de diversas cores; as suas escamas brilhantes”.
Entretanto salta aos olhos, nesse livro, a receita dos Biscoitos Antropológicos (que emprestamos para o título desse texto):
Escalde-se um prato fundo de fubá com 123 gramas de gordura fervendo, feito o que, ajuntem-se-lhes dous pratos de polvilho, 123 grammas de manteiga, 3 ovos e 5 gemas; sove-se bem essa massa até ficar bem fina, estende-se e cortem-se figuras de animais, de homens, mulheres, etc. que em bandejas polvilhadas, levão-se a forno regular [grifo nosso] (Rego, 2010, p. 63).
Embora nesta massa não haja, curiosamente, nenhuma referência ao emprego do açúcar, parece permitir uma consistência tal que se podem moldar corpos de homens e mulheres. Raul Jody (2010, p.63) acrescenta o seguinte comentário a tal receita: “Os biscoitos antropológicos nascem de uma compreensão estética na cozinha de que os formatos da massa de fubá de milho, enriquecida com ovos, polvilho entre outros ingredientes, podem retratar corpos e ou elementos anatômicos de homens ou mulheres.” Com relação ao curioso nome da receita, “biscoitos antropológicos”, poderíamos corrigi-lo para “biscoitos antropomórficos” ou, não sem uma dose de ironia, mudá-lo para “biscoitos antropofágicos”.
Nunca saberemos exatamente qual receita do século XVIII foi usada para gerar a matéria-prima plástica a ser montada nas fôrmas de marcar doces do Museu da Inconfidência. Por serem feitas em pedra, possivelmente esta pasta ia ao forno dentro dos moldes. Em recente exposição no Museu, ao lado das fôrmas, aparecem réplicas em gesso “tiradas” das matrizes e podemos entender como seriam estes doces, já que nas matrizes somente poderíamos vê-los “em negativo” (fig. 4).
If soapstone was the raw material used to create these small sculptures—as negative molds, extremely low reliefs designed to shape sugar sculptures—then sugar itself can also be understood as a sculptural material. According to the museum’s classification, these molds for sweets are tellingly categorized as “artist/craftsman equipment.” All of this leads us to broader aspects of the sugar-based economy and the various cultural meanings of sugar, which, beginning in the 17th century, was exported in vast quantities from Colonial Brazil to the Metropolis.
This so-called “white powdered gold” was treated as a precious raw material, its use strictly controlled and weighed in milligrams, according to the regulations governing culinary artisans such as confectioners and pastry chefs, whose social status was comparable to that of other skilled craftsmen like carvers or cabinetmakers. Yet, due to the value of sugar, they also approached the social rank of gold- and silversmiths.
The Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa (1926), dated 1576 (a written compilation of customary laws in effect since the 15th century and which remained influential in colonized territories for centuries), established the rules for the profession of confectioner, as well as the definition of the craft and the types of sweets one must be able to make to be considered a master confectioner. The confections required for the examination of the trade were listed in detail, along with the regulations for apprentices. There was strong concern regarding the essential raw material of the confectionery trade: sugar. Its value was linked to its whiteness—the whiter it was, the greater its nobility and suitability for the art of confectionery. The purchase of sugar by confectioners was strictly regulated, with severe punishments for diversion or smuggling (Langhans, 1943).
Let us now examine some of the articles from the Regimento dos Confeiteiros:
21 – That every confectioner in this city who purchases sugar must report it to the judges and the notary, truthfully declaring the prices and conditions under which it was purchased and the markings on the boxes; and the judges shall distribute it among the artisans (...). 22 – It is ordered that no confectioner shall dare to bring any sugar to their workshop without it having been properly purchased, because it is often found that they take it to their workshops outside the main street under false pretenses, claiming it is for their master’s use (...). 24 – It is ordered, for the benefit of the poor who cannot afford to buy large quantities of sugar, alfenim, or other sugar works, that confectioners—beyond the weights established by law and regulation—shall be advised not to sell sugar or sugar works by the ounce at a higher price than what is charged by the arretel (pound) (...). (1926)
The Livro dos Regimentos, compiled in the 16th century, as we have seen, remained in effect—with some modifications—until the early 19th century. Its text reflects a period preceding the rise of large-scale sugar production from Colonial Brazil. From the 17th century onward, sugar would become a highly valuable raw material, the very essence of colonization and the exploitation of Brazilian lands, cultivated in vast sugarcane plantations and processed in mills powered by human labor, especially that of enslaved populations forcibly displaced from Africa in one of the most violent diasporas in history.
The book Frutas do Brasil: numa nova, e ascética Monarchia, consagrada à Santíssima Senhora do Rosário, published in 1702 and written by António do Rosário, as Byron (2009, p. 47) notes, “(...) exalts the qualities of Brazilian fruits, through which it allegorizes spiritual fruits. It is an allegorical discourse aimed at spreading the Catholic faith in the New World.” Here, if pineapples were the kings, occupying the first chapter of the book, sugarcane was the second chapter—“the queen of this vast and sweet Empire of Brazil,” “mother of sugar,” “Goddess of sweetness,” “a queen who gives more to Portugal than India, in the sugar made from cane, like diamonds and pearls, for so the finest sugars are called, which have enriched the Crown and Kingdom of Portugal.” Or still: “the sugarcane, which is the source of the sweetness of the soul that loves God and desires, in this sad and miserable vale of tears, to enjoy a sweet and delightful life (...),” while also warning of the dangers that dwell in sugar: “The sensual man says that his sin is sweet (Homini fornicario omnis panis dulcis...).” Sweets were also metaphors of divine love in contrast to the bitterness of worldly suffering (Rosário, 1702, pp. 50–59).
Thus, the molds for shaping confections reveal sweets as edible objects, made of sugar, like sculptures to be visually appreciated and illusorily touched in their solid materiality—elaborated with extreme refinement and suggestive volumes, drawing them close to goldsmithing or miniature sculpture. Yet they were ultimately destined to be consumed, tasted by the palate, and capable of nourishing the body with vibrant energy, bringing both pleasure and guilt.
The sugar mill becomes a metaphor for the Last Judgment: “as can be seen in the crushing of a mill, a reckoning of the sins we commit and the blessings we receive.” The furnaces and boiling cauldrons in the mills are seen as hell; and the purification and whitening of the sugar, as purgatory. The whitest and finest sugars “are the greatest Saints of the Catholic Church; refined sugar, the devout; reboiled sugar, the converted; and brown sugar—if I may call it that without offense—may be of greater worth than much white sugar, and who would that be? Saint Benedict, the glory of Black people (...).” And further: “(...) just as the sugar mill of Brazil is both sweet and bitter; sweet for the sugar, bitter for the labor by which it is made; it may well be included among the parables of Judgment Day, the parable of the sugar mill of Brazil (...)” (Rosário, 1702, pp. 74–100).
We are thus proposing a history of molds for sweets based on methodological foundations in dialogue with the history of food and material culture studies—understanding them as part of the economic dynamics of sugar production, the wealth generated through colonial exploitation, and as mystical exaltation in the terms proposed by António do Rosário in his book Frutas do Brasil (1702), with particular attention to the pages devoted to sugarcane.
At the same time, it is also important for us to understand both Portuguese and Brazilian confectionery as the result of the work of confectioners and their craft guilds, as well as the predominantly female character this task took on in the colony—performed by enslaved women, by street vendors (quituteiras de ganho) who sang while selling their goods. These women confectioners operated under various forms of labor exploitation, serving their “masters”—nobles, rulers, and clergy—preparing “banquets for all noble and distinguished persons, both secular and ecclesiastical,” to use the words of the Triunfo Eucarístico of 1733. Their sweets were also small sculptures made of sugar.
In the introduction to the Dicionário do Doceiro Brasileiro, Raul Lody (2010, pp. 14–15, 22) explains that “the use of sugar marks a place of power, including the use of great quantities of sugar.” For him, “the artisanal making of sweets is essentially an aesthetic achievement.” And furthermore: “Time and almost religious dedication are required to experiment and seek out the flavor and beauty of the sweet. For initially, a sweet is meant to be seen and desired, and it must be beautiful.” Later on, he also emphasizes the role of sweets as markers of identity, making an indirect reference to the molds they bear.
Just like a coat of arms, a heraldic mark such as a castle tower, two lions, or even armor adorned with a fleur-de-lis, the cakes invented in the sugar mills were true culinary signatures, expressing the desire to have a mark—a sense of belonging to a place or a family (Lody, 2010, p. 23).
Everyday sweets—desserts for “ordinary days,” even if only for the tables of the few—were not to be confused with the sweets reserved for special occasions. “What is sweet, and the act of making or eating something sweet, requires a time of devotion. A time that goes far beyond the clock.” Cake is one of those types of sweets associated with special times, with celebrations: engagement cakes, wedding cakes, cakes brought when visiting a woman who has just given birth, birthday cakes, Christmas cakes (Lody, 2010, p. 22).
It is beyond the scope of these lines to revisit the history of recipe books in Portugal and their presence in libraries (or livrarias) during the colonial period in Brazil. From the Livro de cozinha of Infanta D. Maria of Portugal—a 15th- or 16th-century manuscript held in the National Library of Naples—to the Arte da Cozinha by Domingos Rodrigues in the 17th century and the Cozinheiro Moderno or Nova Arte de Cozinha by Lucas Rigaud in the 18th century, one could trace a history of dessert recipes crafted especially for festive occasions.
However, considering both the intent to preserve traditional Portuguese culinary recipes and their long adaptation to Brazilian ingredients and techniques, let us turn to a book that dates well after the molds for sweets housed in the Museum of the Inconfidência. This is the Dicionário do Doceiro Brasileiro, published in 1892 and compiled by Dr. Antonio José de Souza Rego (2010, p. 496). Here, sugar is used to construct illusory forms, like sculptures: “One can imitate Chinese fish by sprinkling them with red powdered sugar: in the same way, using sugar powdered in different colors, their shiny scales can also be imitated.”
Yet what stands out most in this book is the recipe for Anthropological Biscuits—a name we have borrowed for the title of this text.
Scald a deep dish of cornmeal with 123 grams of boiling fat. Once this is done, add two dishes of cassava starch, 123 grams of butter, 3 whole eggs, and 5 yolks. Knead the dough well until it becomes very smooth, roll it out, and cut it into shapes of animals, men, women, etc., which, on floured trays, are taken to a moderate oven [emphasis ours] (Rego, 2010, p. 63).
Although this dough curiously contains no reference to the use of sugar, it appears to have a consistency suitable for molding human male and female figures. Raul Lody (2010, p. 63) adds the following comment to this recipe: “Anthropological biscuits arise from an aesthetic understanding in the kitchen that the shapes of cornmeal dough, enriched with eggs, cassava starch, and other ingredients, can portray bodies or anatomical elements of men or women.” As for the curious name of the recipe, anthropological biscuits, we might correct it to anthropomorphic biscuits or, not without a touch of irony, rename them anthropophagic biscuits.
We will never know exactly which 18th-century recipe was used to produce the plastic mass that would be shaped using the molds for sweets from the Museum of the Inconfidência. Since the molds are made of stone, it is possible that this dough was baked directly inside them. In a recent exhibition at the Museum, next to the molds, plaster replicas cast from the originals were displayed, allowing us to imagine what these sweets might have looked like—since the molds themselves show only their negative form (fig. 4).
Figura 4 – Vitrine com as Fôrmas de marcar doce. Autor Não identificado. Segunda metade do século XVIII. Museu da Inconfidência. Ouro Preto, Minas Gerais. Foto: A. Brandão Fonte: Arquivo autora.
No receituário português, uma das pastas mais reconhecidas por sua plasticidade para moldar eram os massapães. Desde o manuscrito de receitas da Infanta D. Maria datado da transição do século XV para o XVI, sobre os massapães dizia-se “façam-nos da feição que quiserem” (p. 139). No entanto, outras receitas de biscoitos aqui e nos demais livros de Rodrigues, de Rigaud e Souza Rego trazem muitas vezes esta mesma expressão “da feição ou do formato que se quiser”.
Gostaria de propor, entretanto, que os moldes para doces com formato de homem e mulher poderiam ter sido concebidos para uma ocasião de celebração nupcial. Nesse sentido, as imagens do homem e da mulher representados na fôrma para marcar doce do Museu da Inconfidência seriam retratos do noivo e da noiva. A descrição oferecida pela catalogação do museu reconhece que a figura feminina se apresenta “com cabeça encimada por ornato de flores, trajando vestido longo com decote em "U", de mangas curtas, e saia com armação, tendo, presa ao pescoço, gargantilha de contas. Pés posicionados lateralmente com sapatos de salto; braço esquerdo levemente flexionado, com a mão voltada para trás; braço direito disposto lateralmente, segurando à mão uma rosa.” Tais elementos poderiam indicar que se tratava de uma jovem vestida de noiva.
As imagens do noivo e da noiva contidas nas fôrmas de marcar doces poderiam ser tanto compreendidas como retratos esquemáticos e convencionais de pessoas reais ou simplesmente “um” noivo e “uma” noiva simbólicos. Do ponto de vista técnico, se comparadas com a imagem de Nossa Senhora da Conceição e se adotássemos critérios de representação da figura humana baseados nos cânones clássicos e europeus, pelo posicionamento dos pés, pela frontalidade das figuras, seria possível dizer que o artífice teve algumas dificuldades. Por outro lado, transmite de modo inteligente os corpos representados, solucionando talvez problemas da estrutura, estabilidade e observação de um doce a ser moldado. De qualquer forma, cabe situá-las numa tipologia de objetos ou modalidade de objetos, em termos de “cultura material matrimonial”, como parte integrante do ritual de núpcias das sociedades cristãs ocidentais (Cerqueira e Santos, 2011, p. 306).
Não é preciso argumentar sobre a importância das cerimônias de casamento como afirmação religiosa e social numa sociedade fortemente marcada pelas violências do patriarcalismo, do colonialismo, da escravidão (também sexual) e de todas as formas de esgarçamento. Os textos agrupados por Regina Schökpe e Mauro Baladi (2024), referentes a escritos do século XVIII por autoras femininas e ou sobre as mulheres tratavam de “uma nova era, onde aos poucos os direitos femininos deixariam de ser vistos como uma extravagância para se tornarem um dos mais urgentes problemas de nossa sociedade”. No Setecentos: “a revolução feminina dá os seus primeiros passos, embalada (...) pelos ideais democráticos iluministas.” (Schöpke, Baladi, 2024, p. 20)
O texto anônimo de 1787, Filosofia de uma mulher, aponta o casamento como destino incontornável: “Mencionai a uma jovem um homem de bem, um homem de mérito. Fazei com que ela trave conhecimento com ele, com que ela deposite sua felicidade em amá-lo e convencei de que somente este homem pode torná-la feliz” (anônimo, apud. Schöpke, Baladi, 2024 p. 343) Os escritos, em seu conjunto, revelam discussões muito vivas no século XVIII em torno da educação e do corpo feminino, do amor erótico, dos perigos da libertinagem, das virtudes e indissolubilidade do matrimônio.
A relevância moral, religiosa, existencial e jurídica – para não dizer também econômica e política do matrimônio – se manifesta claramente em obras como Gamologia, ou da educação das moças destinadas ao casamento do Chevalier de Cervfol, datada de 1772. Nesse tratado, dividido em dois tomos, o autor aconselha a uma certa jovem sobre a importância e os perigos do casamento, da escolha do noivo; previne quanto à infidelidade e aos excessos da autoridade marital e da violência; sobre dote e herança; alerta contra a política libertina e galanterias; estabelece diferenças entre a paixão e a amizade. “É um belo dia aquele no qual nos casamos. Que abundante colheita de flores! Mas elas são colhidas à beira de um precipício” (Cervfol, 1772, tomo I p. 22) O “grande dia”, no tratado destinado à educação das jovens destinadas ao casamento, era um campo florido à beira do abismo.
O século XVIII foi um momento considerado como divisor de águas também para a condição de opressão feminina:
(...) a disseminação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que tanto embalaram os iluministas – especialmente os franceses – na crítica contra os abusos religiosos e políticos, fizeram desse movimento intelectual um fenômeno que se estendeu para muito além da Europa (como podemos constatar pelos episódios da Independência norte-americana e da Inconfidência mineira) (Schöpke, Baladi, 2024, p. 7)
Para concluir, sem nos distanciarmos muito de nosso problema – as fôrmas de marcar doces do Museu da Inconfidência, contendo as figuras de um homem e uma mulher, talvez destinados a um banquete de núpcias em Minas Gerais do Século XVIII, trazem uma série de inquietações interpretativas. Um labirinto que leva ao problema histórico-artístico dos baixíssimos relevos em pedra-sabão, como moldes para esculturas em miniatura, em diálogo com a grande escultura monumental; ao problema das matérias-primas: a pedra-sabão e o açúcar, este último como produto do amplo sistema mundial capaz de movimentar a economia dos séculos XVI e XVII; aos trabalhos artesanais dos confeiteiros e sua relação com os demais fazeres artísticos; aos livros de receitas ou aos estudos da cultura material matrimonial, assim como aos reflexos do pensamento iluminista no Brasil Colônia, com os primeiros e tímidos passos de emancipação feminina.
In Portuguese recipe collections, one of the doughs most recognized for its plasticity was massapão (marzipan). As early as the recipe manuscript of Infanta D. Maria, dated to the transition from the 15th to the 16th century, it was said of massapães: “shape them in whatever form you wish” (p. 139). However, other biscuit recipes found in the works of Rodrigues, Rigaud, and Souza Rego also frequently include the same phrase: “in the form or shape desired.”
I would like to propose, however, that the molds shaped as a man and a woman may have been conceived for a nuptial celebration. In this sense, the images of the man and woman depicted in the mold for sweets from the Museum of the Inconfidência could be understood as portraits of the groom and the bride. The description offered by the museum’s catalog notes that the female figure is represented “with a floral ornament atop her head, wearing a long dress with a U-shaped neckline, short sleeves, and a structured skirt; around her neck, a beaded choker. Her feet are turned sideways with heeled shoes; her left arm is slightly bent, with the hand turned backward; her right arm extends to the side, holding a rose.” These elements may suggest that the figure represents a young woman dressed as a bride.
The images of the bride and groom in the molds for sweets could thus be interpreted either as schematic and conventional portraits of real individuals or simply as symbolic representations of “a” bride and “a” groom. From a technical point of view, when compared to the image of Our Lady of the Immaculate Conception—and if we were to adopt criteria of human representation based on classical and European canons—the positioning of the feet and the frontal stance might suggest some difficulties on the part of the artisan. On the other hand, the bodies are conveyed with intelligence, perhaps resolving structural or visual challenges related to the stability and legibility of a sweet to be molded. In any case, they may be situated within a typology or category of objects in the field of material matrimonial culture, as part of the nuptial ritual in Western Christian societies (Cerqueira and Santos, 2011, p. 306).
There is no need to argue the importance of wedding ceremonies as religious and social affirmations within a society deeply marked by patriarchal violence, colonialism, slavery (including sexual slavery), and all forms of structural rupture. The texts compiled by Regina Schöpke and Mauro Baladi (2024), written by or about women in the 18th century, discuss “a new era in which women’s rights would gradually cease to be seen as a frivolous demand and come to be one of the most urgent issues of our society.” In the eighteenth century, “the female revolution took its first steps, carried along by the ideals of Enlightenment democracy.” (Schöpke & Baladi, 2024, p. 20)
An anonymous text from 1787, Philosophy of a Woman, presents marriage as an inescapable destiny: “Speak to a young woman of an honest man, a man of merit. Have her come to know him, place her happiness in loving him, and convince her that only this man can make her happy” (anonymous, apud Schöpke & Baladi, 2024, p. 343). Taken together, these writings reveal the vivid debates of the eighteenth century around the education and the female body, erotic love, the dangers of libertinism, virtue, and the indissolubility of marriage.
The moral, religious, existential, and legal relevance of marriage—not to mention its economic and political weight—clearly manifests in works such as Gamology, or the Education of Young Women Destined for Marriage by the Chevalier de Cervfol, dated 1772. In this treatise, divided into two volumes, the author advises a young lady on the importance and risks of marriage and choosing a husband; he warns of infidelity and the excesses of marital authority and violence; he speaks on dowries and inheritance; he cautions against libertine politics and gallantry; and he distinguishes between passion and friendship. “It is a beautiful day, the day on which one marries. What an abundant harvest of flowers! But they are gathered at the edge of a precipice” (Cervfol, 1772, vol. I, p. 22). The “great day,” in this guide to the education of girls destined for marriage, was a flower-filled field at the brink of an abyss.
The eighteenth century was a pivotal moment also for the evolving awareness of women’s oppression.
(...) the dissemination of the ideals of liberty, equality, and fraternity—so central to Enlightenment thinkers, especially the French—in their critique of religious and political abuses, made this intellectual movement a phenomenon that extended far beyond Europe (as we can see in events such as the American Revolution and the Inconfidência Mineira) (Schöpke & Baladi, 2024, p. 7).
To conclude, without straying too far from our central concern—the molds for sweets from the Museum of the Inconfidência, featuring the figures of a man and a woman, perhaps intended for a wedding banquet in 18th-century Minas Gerais—we are left with a series of interpretative questions. A labyrinth that leads to the historical-artistic issue of extremely low reliefs in soapstone as molds for miniature sculptures, in dialogue with large-scale monumental sculpture; to the question of raw materials: soapstone and sugar—the latter a product of the vast global system that drove the economy of the 16th and 17th centuries; to the artisanal work of confectioners and its relationship to other artistic practices; to recipe books or the study of material matrimonial culture; as well as to the echoes of Enlightenment thought in Colonial Brazil, with the first tentative steps toward female emancipation.
Angela Brandão
Universidade Federal de São Paulo
Bolsa de Produtividade em Pesquisa CNPq
30 de abril de 2025
ALLENDE, Isabel. Afrodite: contos, receita e outros afrodisíacos.Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 2007.
ÁVILA, Affonso. Resíduos Seiscentistas em Minas. Textos do Século do Ouro e as Projeções do Mundo Barroco. Belo Horizonte, Sec. Est. Cultura de Minas Gerais, Arquivo Público Mineiro, 2006.
BIRON, Berty R. R. Frutas do Brasil: uma alegoria do novo mundo. in Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n° 3, Novembro de 2009. Pp. 47-57.
CERFVOL, M. La Gamologie, ou De l’educations des filles destinées au mariage… Paris: Duchesne, 1772. Disponível em: Tomo I https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1510649z/f12.item.r=Cerfvol%20La%20 Tomo II https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k15106511/f18 Acesso em: 27 mar. 2025.
CERQUEIRA, Fábio Vergara; SANTOS, Denise Ondina Marroni dos. A Camisola do Dia. Patrimônio têxtil da cultura material nupcial (Rio Grande do Sul, do início a meados do século XX) Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 24, nº 48, p. 305-330, julho-dezembro de 2011.
DA COSTA, Nina Ricardo Dias. O Habitus em Erwin Panofsky: Uma Iconografia da Última Ceia Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Arte Visuais, do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, Orientadora: Drª Profª Vera Pugliese. Brasília, 2021.
FLANDRIN, Jean-Louis. Da dietética à gastronomia ou a liberação da gula. In FLANDRIN, J.L. e MONTANARI, M. História da Alimentação, São Paulo: Estação Liberdade, 2008.
GRIEGO, Allen J. The Meal. Themes in Art. London, 1992.
JÜTTE, Robert. A History of the Senses. From Antiquity to Cyberspace.Cambridge, Polity, 2005.
LANGHANS, Franz Paul. As Corporações dos Ofícios Mecânicos, Subsídios para sua história. Com um estudo do prof. Marcello Caetano. 2 vols. Imprensa Nacional de Lisboa, 1943.
Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sëpre leal cidade de Lixboa –1572. Publicado e prefaciado pelo Dr. Vergílio Correia. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926.
NORDENFALK, Carl. The Five Senses in Late Medieval and Renaissance Art. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes Vol. 48 (1985), pp. 1-22. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/751209. Acesso 27 de jan de 2019.
O livro de cozinha da Infanta D. Maria de Portugal : primeira edição integral do códice português I.E. 33. da Biblioteca nacional de Nápoles / leitura de Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut ; prólogo, notas aos textos, glossario e indices de Giacinto Manuppella ; introdução historica de Salvador Dias Arnaut. Disponível em https://gallica.bnf.fr acesso 20 abr. 2025.
QUELLIER, Florent. Gula: história de um pecado capital. São Paulo, SENAC, 2011.
REGO, Antonio José de Souza. Dicionário do Doceiro Brasileiro. Lody, Raul (org.) São Paulo: Senac, 2010.
RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Arte de Cozinha... Lisboa, Lino da Silva Godinho, 1785. Ed. Facsímil. Liboa, Colares, 1999.
ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais: nascimento do consumo nas sociedades tradicionais (XVII-XIX). Rio de Janeiro, Rocco, 2000.
RODRIGUES, Domingos. Arte de Cozinha. Lisboa, Manoel Lopes, 1693. Ed. Facsímil. Lisboa. Colares, 2001.
ROSÁRIO, Frei Antonio do. Frutas do Brasil. Fac-símile da edição de Lisboa: António Pedroso Galrão, 1702. Apresentação de Ana Hatherly. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002. de Frei Antonio do Rosario (1647-1704) BNP Biblioteca Digital.
SCHÖPKE, Regina; BALADI, Mauro. (Org. Trad. e Notas). Mulheres nas Luzes. São Paulo: Editora Unesp, 2024.
YANG, Klency Brito Kakazu e DOMENECH, Fernanda. Relatório Final de Iniciação Científica PIBIC- CNPq 2013-2014. Arte efêmera nos séculos XVII e XVIII: a estética da alimentação. Orientação Angela Brandão. Departamento de História da Arte, UNIFESP.
Site do Museu da Inconfidência:
https://museudainconfidencia.acervos.museus.gov.br/acervo-museologico/forma-de-marcar-doces