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Warburg e Renascimentos
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Warburg e Renascimentos
Modos de sobrevivências para historiadores da arte: um Cascudo para Warburg
Aby Warburg
Câmara Cascudo
Em retrospectiva no final da vida, Warburg destacou que desde o começo da carreira o grande impulso de suas pesquisas apareceu como a necessidade de uma “correção à doutrina de Lessing, ou mais exatamente à ideia de Winckelmann a respeito da serenidade olímpica da Antiguidade” (2016, p. 184). Em jogo estava, sobretudo, o parâmetro esteticista em que a compreensão das obras era limitada a elementos apenas formais ou a funções apenas estilísticas. Isto é, de certa forma apartando a teoria da arte de uma estética mais geral, das condições mesmas de experiências sensíveis. Warburg opunha a essa abordagem um método histórico-cultural, ampliado depois por bases antropológicas e até biológicas: propôs um alargamento das fronteiras da história da arte rumo a uma rede transdisciplinar que fosse capaz de reunir novamente as condições das experiências sensíveis em geral com as obras de arte enquanto experiências sensíveis distintas, mas não separadas da sensibilidade geral – na verdade como ereais (talvez só mais refinadas e concentradas) com as condições de sensibilidade geral.
Conceber a expressão humana na obra figurativa como efígie da vida prática em movimento (tratando-se de um culto religioso ou do drama da cultura através da festividade cortesã ou através do teatro) era uma convicção a que eu tinha chegado há tempos, (...)” (ibidem, p.187-188)
Faltando exatamente uma semana para a celebração do Dia do Folclore (22/08), temos a oportunidade de indicar a necessidade de investigação científica, até agora inescrita, das analogias conceituais entre Aby Warburg (1866-1929) e o folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). Podemos organizar esse diálogo – transhistórico, anacrônico, e talvez fora dos limites filológicos – justamente pela complementariedade polar desses autores entre essa distinção estética referida. Enquanto Warburg se notabilizou pelo estudo de como obras de arte, enquanto formas de experimentação que seguem relacionadas ou ancoradas em formas outras de experiências em geral, Cascudo se notabilizou pelo estudo de como formas de experiência em geral, coletivas, revelam também em si mesmas experiências refinadas e concentradas.
Assim, por exemplo, Warburg demonstrou como a investigação dos traços figurantes de uma personagem menor nos afrescos do Palácio Schifanoia (em Ferrara) podia revelar uma rede imensa de conexões com as crenças astrológicas e divinatórias, estabelecendo um fluxo de repetições e transformações que atravessam tempos, espaços e diferentes campos de saber:
Com isso, é possível analisar de forma inequívoca todo o sistema astral da faixa intermediária: sobre a camada inferior do firmamento grego de astros fixos, depositou-se inicialmente o esquema do culto aos decanos, à maneira egípcia. Sobre esse sistema, foi depositada a camada de sua reformulação mitológica indiana, que depois – provavelmente por intermédio persa – teve de ser adaptada ao ambiente árabe. Ocorreu então, com a tradução hebraica, um processo de sucessivas sedimentações, que a turvou; enfim, o firmamento grego de estrelas fixas desembocou (com a tradução latina de Abû Ma’schar, feito por Pietro d’Abano por meio da versão francesa) na cosmologia monumental do início do Renascimento italiano, justamente na forma daquelas 36 figuras enigmáticas da faixa intermediária dos afrescos de Ferrara. (2015, p. 111-112).
Já Cascudo, por sua vez, demonstrou como atos tomados como pura crendice no interior do Rio Grande do Norte se revelavam ecos curiosos e oblíquos – de certa forma refinados e concentrados pela sua própria aparente falta de razão – de expressões culturais outras e antigas. Como o caso da parteira simples garantindo ao médico formado que enquanto alguém estiver de pernas cruzadas o bebê não conseguiria nascer: uma expressão patética que, no entanto, se reconhece inteiramente em nada menos que os versos de Ovídio sobre como o parto do próprio Hércules foi atrapalhado. (Câmara Cascudo, 1971, p. 149-150). Ou o caso do pedreiro preso em Natal, 1951, por ter arrancado a porta da casa de um inquilino que lhe devia: no entanto, o mais surpreendente não é a aparente irracionalidade do ato (até do ponto de vista simbólico de difícil apreciação), mas que ele seja uma formulação transhistórica que Cascudo é capaz de reconhecer em caso semelhante no interior do próprio Rio Grande do Norte cem anos antes, ou ainda nos registros jurídicos de Balneo, hoje Portugal, em 1152! (ibid, p.178-179)
Apesar dessa distinção de polaridade óbvia (Warburg estudando a recepção das obras de arte; Cascudo nos estudos da recepção dos modos populares de sentir, pensar e agir) o segundo demonstrou uma série de interesses semelhantes aos do primeiro. Escritor prolífico, publicou estudos sobre a gestualidade em geral e seu anacronismo (História dos nossos gestos, 1976), deu atenção aos problemas geográficos envolvidos na transmissão de expressões simbólicas (Geografia dos mitos brasileiros, 1947), e dedicou-se aos estudos ocultistas também, por exemplo atravessando do catimbó potiguar até Grécia Antiga (Meleagro, 1951). Porém, os exemplos citados acima advêm do ensaio seu que mais gostaria de destacar nessa aproximação analógica: Para o Estudo da Superstição.
Vale recordarmos que o maior ensaio de Warburg, A profecia da Antiguidade pagã em texto e imagem nos tempos de Lutero (1918-20), começa anunciando que se tratava de um trabalho preparatório para um compêndio ainda por se fazer sobre “a servidão do homem moderno supersticioso” (2015, p.130). E termina com uma longa citação do grande Goethe conceituando a superstição como aplicação equivocada, perniciosa, o obscurecimento da razão, mas “quem pode dizer que satisfaz suas incontornáveis necessidades sempre de um modo puro, acertado, verdadeiro, irrepreensível e completo”? (Goethe apud Warburg, 2015, p.196-197) Temos aqui, em resumo, toda a problemática do conceito warburguiano mais central: o pós-vida ou sobrevivência (Nachleben) das formulações patéticas. “Sobrevivência” não mais como um deus pagão que revive triunfalmente sobre seus concorrentes pela sua figura e significado (como o Apolo Belvedere redescoberto, modelo máximo de Winckelmann), mas enquanto potências energéticas de deus morto que se transmitem nos detalhes, de forma sintomática ao invés de imitativa, sobrevivendo apenas de maneira fantasmal à sua própria morte (como as recorrências de formulações patéticas que Waburg encontra em A Morte de Orfeu, de Dürer). Logo, assim como as superstições o Nachleben também aparece como aquilo-que-sobreviveu anacronicamente, de forma não imediata, e com sentido ou significado diverso ou transformado daquele do seu contexto anterior.
Didi-Huberman (2013, p.51-59) retraçou de maneira interessante como essa relação pode ser apreendida até histórica e filologicamente: antes de aparecer como conceito da ciência da cultura via história da arte warburguiana (Nachleben), a “sobrevivência” apareceu como conceito da ciência da cultura segundo a antropologia inglesa de E. Tylor (Survival). Quarenta anos antes de Warburg, Tylor também teve experiências decisivas entre tribos mexicanas para o desenvolvimento de seus estudos e conceitos.
Mais que tudo, porém, Tylor interessou-se pelas sobrevivências sob o ângulo mais específico das superstições. A própria definição do conceito antropológico foi inferida por ele do sentido tradicional de superstitio em latim:
Poderíamos, não sem razão, aplicar a tais fatos a qualificação de superstição, uma qualificação que seria legítimo estender a uma profusão de sobrevivências. A etimologia da palavra superstição, que originalmente parece haver significado o que persiste de eras antigas, torna-a perfeitamente apropriada para exprimir a ideia de sobrevivência. Hoje, entretanto, esse termo implica uma censura (...). Para a ciência etnográfica, é indispensável introduzir uma palavra como sobrevivência [survival], destinada simplesmente a designar o fato histórico.
É compreensível, portanto, que a análise das sobrevivências em Cultura primitiva culmine num longo capítulo dedicado à magia, à astrologia e a todas as suas formas aparentadas. Como não pensar nesse auge da Nachleben der Antike que é constituído, em Warburg, pela análise das manipulações astrológicas nos afrescos de Ferrara, ou nos próprios escritos de Martinho Lutero? Nos dois casos [...], são a falha na consciência, a incorreção na lógica, o contrassenso da argumentação que, a cada vez, abrem na atualidade de um fato histórico a brecha de suas sobrevivências. (Didi-Huberman, 2013, p.57)
Não tenho a informação sobre se Cascudo, na sua também respeitada biblioteca particular, chegou a ser leitor de Tylor. Mas não deixa de ser impressionante o quanto Para o Estudo da Supertição parece reforçar esses laços já apresentados, porém na perspectiva não das experiências refinadas das obras de arte, mas nas experimentações concretas dos coletivos populares.
Em primeiro lugar ele também retoma o sentido latino de superstitio não apenas como o-que-sobreviveu, mas como atos ou gestos reflexos, formulações que permanecem porém fora da sua lógica anterior e imediaticidade sem, contudo, deixar de conter sua própria lógica como resposta a uma necessidade real. “é uma sobrevivência de cultos desaparecidos. Ficam vestígios atualizando as proibições ou atos vocatórios de infelicidades de outrora.” (1971, p.150); “Denominamos superstições gestos e palavras, ações e atitudes, antigamente fórmulas lícitas (...) Essencial, para mim, é ressaltar a existência lógica da superstição” (ibid, p.166); “a superstição possui o raciocínio dela” (p.183); “Essencial é notar o perfeito ajustamento psicológico” (ibid, p.179).
Os velhos deuses eram demônios novos.
(...) Desaparecendo o ritual, permanecem nervos vivos do organismo morto, (...) O Tempo trouxe outras fórmulas, lícitas depois vedadas, mas recolhidas aos escaninhos da reminiscência popular. É a técnica criadora da superstição, super-stitio, o-que-sobreviveu, resistindo ao desgaste dos atritos das culturas sucessivas. (ibid, p.178)
Como Warburg pensa as transformações e migrações expressivas da Nachleben através do pathos e do que chamou Hybridprodukt, Cascudo também ressalta no ensaio que as expressões supersticiosas se dão por meio de “transmigração afetuosa” (ibid, p.147), e tendo o mestiço com papel determinante na sua circulação e modificação (ibid, p.160). Como no Atlas warburguiano, a deusa Mnemosyne não deixa de se fazer presente também no ensaio cascudiano como fonte e reserva dessas expressões em formulações constantemente refiguradas (ibid, p.168). E o anacronismo estrutural desses estudos é discutido ao longo de todo o ensaio: “A intemporabilidade como dimensão supersticiosa é estar, logicamente, no tempo e fora dele. No tempo, pela ação. Fora do tempo, pela razão do ambiente presente, tornando-a incompreensível e longínqua.” (ibid, p.167); “é uma contemporaneidade milenar” (ibid, p.172).
Atento ao polo inverso dos estudos de Warburg, Cascudo argumenta que as superstições não têm carácter criativo, mas conservativo, ou seja, são propícias à repetição geral da experiência e não à uma experimentação mais concentrada e individual (ibid, p.171). Não obstante, ele teoriza que talvez os grandes gestos das figuras de gênio não sejam mais do que manifestações supersticiosas positivadas, em vez de mórbidas: “A superstição portuguesa não retardou a epopeia navegadora nem a superstição espanhola evitou o domínio territorial do maior império na história do mundo.” (ibid, p.164) De modo que o estudioso do folclore não titubeia em apontar: que a superstição não é apenas uma constante de “culturas primárias”, mas igualmente constante nas organizações mais altas e luminosas – ela se dá sim no carroceiro Zebedeu da periferia de Natal, mas também necessariamente em... Goethe! (ibid, p.182) Então, considerando a superstitio como essa forma de sobrevivência bem entendida, a teoria de Cascudo poderia ressoar indiretamente a teoria warburguiana do Seelendrama, da crise decisiva que acomete todo artista no momento mesmo da criação artística. Isto é, o drama psíquico
“entre a autorrenúncia instintiva ao ego e a consciente criação formal delimitadora (...) quando aceita seguir Mnemosyne, a mãe das nove Musas, o artista se descobre preso na situação inevitável – estrutural, estruturante – de um vai-vém entre ‘alienação pulsional’ e ‘criação formal’.” (Didi-Huberman, 2013, p.273)
Superstitio, Survival, Nachleben... afinal “Que é um “conceito” senão uma superstição, imperativa e renovável?” (Cascudo, 1971, p.154) Nessa véspera de Dia do Folclore ai de nós acadêmicos, que por vezes nos achamos tão mais próximos de Goethe que de Zebedeu. Fiquemos com a provocação final de Cascudo:
Participando da própria essência mental humana, não há momento na história do mundo sem a presença inevitável da superstição. (...) Há semeadores de superstições, fingindo zombar delas. (...) mesmo as Universidades, são viveiros de superstições antigas, renovadas, readaptadas às exigências modernas. Todas as profissões e atividades têm seu corpus supersticioso. Uma superstição substitui outra, como mudamos de trajos. Há um acervo supersticioso aviatório e o haverá ligado à subsequente astronáutica. Aqueles que afirmam independência absoluta da superstição é porque não desejam confidenciar a participante simpatia. (...) “la superstición de no querer ser supersticioso”. (ibid, p.151)
Não creiam que a superstição esteja cedendo sob a pressão científica. Muda de continente e não de conteúdo. Há uma superstição científica que segue como uma sombra a irmã formal e grave, vez por outra confundindo-se notadamente do domínio da interpretação psicológica. As “escolas”, e sobretudo o scholar, guardam muito da imponência através do aparato supersticioso. (p.154)
P.S.: texto dedicado à Colatina, cidade singular em que só existem duas estações (o verão e a de trem), cortada pelo deus Watu dos Krenak (que os brancos que derramaram lama de barragem e minérios nele chamam Rio Doce), marcada profundamente pelo sentimento da saudade, onde um planetário segue fechado apenas emoldurando o pôr do Sol mais bonito do mundo e a feira aos sábados, cidade que desse jeito me acolheu e que aprendi a amar, e que como só poderia ser aniversaria no próprio Dia do Folclore.
Antônio Barros
Universidade Federal de São Paulo
15 de agosto de 2025
CÂMARA CASCUDO, L. da. Para o estudo da superstição. In: Tradição, Ciência do Povo. São Paulo, Perspectiva, [1966] 1971, p.145-195.
DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro, Contraponto, 2013.
WARBURG, A. De Arsenal a Laboratório. In: Revista Figura, Studies on the Classical Tradition, v. 4, n. 1, 2016, 182-193.
______. Histórias de Fantasmas para Gente Grande. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.