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Warburg e Renascimentos
O que diabos um Laocoonte está fazendo
no Parque do Ibirapuera?
Laocoonte e seus filhos
Professores e alunos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo,
trabalho feito por volta de 1938.
Escultura em bronze,
220 x 165 x 65 cm., com pedestal
em alvenaria de 30 x 160 x 73 cm.
Parque do Ibirapuera,
São Paulo
A pergunta que conduz estas reflexões remete imediatamente a outra mais original: “O que é o Brasil?” E a resposta a esta outra questão é tão aberta, tão multifacetada, que é possível abordá-la corretamente afirmando coisas muito diferentes, por exemplo, “o Brasil é a energia que emana de uma canção dos Mutantes”, ou “o Brasil é um joguinho de futebol entre meninos na praia, em que os gols não são contados”, ou “o Brasil é uma certa pausa singular no tempo e nas ações que uma chuva provoca”, ou “o Brasil é um projeto, em parte bem-sucedido e em parte fracassado, de transplantar a civilização europeia para o nordeste da América do Sul”.
Com esta última definição, apoiando-nos apenas num peculiar aspecto do Brasil –o do seu processo cultural que espia, assim como o resto da América Latina, como uma criança com um telescópio pobre, empoleirada numa cadeira, os monumentos rotundos mal reconhecíveis por trás do muro atlântico– abre-se um caminho, tímido e talvez fértil, por onde passa a pergunta inicial: O que diabos um belo Laocoonte está fazendo no Parque do Ibirapuera?
Vamos tentar, então. O Laocoonte em bronze do Ibirapuera, localizado no final do corredor que se estende do portão 9, surpreende os visitantes desavisados, informando-os de que há obras, as de arte, que são realizadas em busca da beleza, tornando o que não era, em algo que é. Trata-se, portanto, do resultado de um ato criativo, neste caso, de professores e alunos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, instituição acadêmica de ensino de arte fundada em 1873, que criou o grupo de Laocoonte e seus filhos no final da década de 1930. A obra ficou exposta na Avenida Nove de Julho desde 1938, aparentemente de forma ininterrupta, até sua transferência para o Parque do Ibirapuera em 1954, após a criação da área de lazer atrás do tratamento de água e arborização do manguezal que cobria aquela área da cidade. A decoração do Parque, inspirada em modelos europeus, exigiu, em busca de coerência estética, também repor no parque o conjunto de paixões e tensões que alimentam a cultura europeia, que os paisagistas naturalmente buscaram nas raízes da Europa: a mitologia grega. Além disso, hoje, essa obra exposta no Ibirapuera tem ainda mais valor se levarmos em conta que um incêndio ocorrido na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2014 destruiu muitas maquetes em gesso de obras do Liceu de Artes e Ofícios, inclusive as versões das figuras do nosso grupo.
A história de Laocoonte e seus filhos é bem conhecida. O grupo escultórico evoca o sofrimento do sacerdote troiano Laocoonte, pouco antes da captura da cidadela pelos gregos. O episódio conta como os troianos finalmente aceitaram, enganados, o famoso cavalo de madeira (abarrotado de guerreiros em seu interior), que, como presente, os gregos deixaram às portas de Troia, fingindo assim aceitar sua derrota na exaustiva guerra, que estava acontecendo há uma década, buscando o favor divino para retornar ao lar. Laocoonte, no entanto, avisa seus concidadãos que o desastre virá se eles aceitarem o cavalo de madeira, e atira, no relato da Eneida de Virgílio, livro II, vv. 195-227, uma lança no artefato, mostrando que ele é oco por dentro. Naquele exato momento, por intervenção de Atena/Minerva (protetora dos helenos), duas enormes serpentes surgem do mar e sufocam Laocoonte, que estava sacrificando um touro a Poseidon, e seus dois filhos, Antifante e Timbreo, até serem mortos. Os troianos, assustados, com mais razão trazem o cavalo, iniciando assim a sua ruína, que se desencadeia à meia-noite quando os guerreiros, deixando o cavalo/tanque de guerra, tomam de assalto a guarda desprevenida, abrem os pórticos da cidadela e iniciaram uma fogueira, sinal para que suas tropas, que retornavam do mar e já estavam preparadas na costa sob a noite, se aproximassem para completar a tarefa.
Laocoonte e seus filhos
Agesandro, Polidoro e Atenodoro
(Escola de Rodes),
provavelmente por volta de 42-20 a.C.
O valor da obra, sem dúvida intrínseco, foi reforçado pelas circunstâncias de seu reaparecimento na Europa e pela influência que teve, e ainda tem, na recuperação de motivos clássicos no Renascimento. Foi “descoberto” por trabalhadores rurais em um vinhedo localizado no que a arqueologia mais tarde definiu como o Fórum de Tito, nos arredores de Roma, em 14 de janeiro de 1506, e suas cinco peças principais foram desenterradas e limpas nos dias seguintes. No auge da febre pela Antiguidade Clássica que dominava a Cúria Romana naquela época, o Papa Júlio II, informado da notícia pelo proprietário do vinhedo onde ele foi encontrado, enviou seu arquiteto, Giuliano de Sangallo, para ver a obra. Ele imediatamente percebeu que se tratava do grupo descrito por Plínio, o Velho (23-79 d.C.), que em sua Naturalis historia, XXXVI, 37, descreveu esta obra como tendo sido feita por Agesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes, escultores ativos em prol da final do século I a.C. (desde então também se especulou que a obra poderia ser uma cópia de um original grego em bronze, datado do século II a.C.). Sangallo foi acompanhado por seu filho Francesco, que deixou um relato escrito desses eventos sessenta anos depois, e por Michelangelo, que imediatamente capturou o excesso muscular e as contorções estertorosas de Laocoonte, e mais tarde o imitou em várias figuras na Capela Sistina, aquela em que estava trabalhando na época. De qualquer forma, Sangallo rapidamente reuniu as cinco partes principais nas quais o grupo havia sobrevivido e “ordenou” ao Papa que comprasse a obra pelo preço que seu dono pedisse, com Júlio II pagando nada menos que 600 ducados por ela. Pouco depois, o conjunto foi exposto no Pátio das Estátuas do Belvedere, juntamente com o Apolo Pítico e a Ariadne Adormecida, dentro do Palácio do Vaticano, edifício onde ainda hoje está, mutatis mutandis, exposto.
Uma polêmica interessante surgiu, logo que a obra foi apresentada, em torno do braço direito faltante de Laocoonte, já que os artistas não concordavam entre si sobre se o braço faltante deveria ter sido levantado em direção ao céu (como Raphael Sancio, Jacopo Sansovino e Giovanni Angelo Montorsoli supuseram), ou curvado para trás, adicionando contorção e esforço à figura (como Michelangelo propôs). A diferença envolvia conceber Laocoonte como um herói ou, antiteticamente, como um homem derrotado por uma força superior. A primeira interpretação, embora errônea, provou ser a triunfante no Renascimento, de modo que o Laocoonte com o braço estendido se tornou o modelo dominante. A cópia do Parque do Ibirapuera, então, foi feita seguindo o modelo de Baccio Bandinelli, que esculpiu o conjunto entre 1520 e 1525, completando suas partes faltantes e apresentando o braço levantado (obra esta também extraordinária, exposta na Galeria Uffizi em Florença, embora menos bem-sucedida do que a original, em tanto a inclinação quanto o tamanho da cabeça de Laocoonte parecem exagerados).
No entanto, confirmando o que Michelangelo Buonarroti e outros artistas sustentavam na época, ou seja, que o braço faltante deveria estar dobrado para trás, contendo os ataques da cobra, em 1905, a poucos metros de onde o resto do grupo, o arqueólogo tcheco Ludwig Pollak (assassinado em Auschwitz em 1943-1944) encontrou o braço e o doou ao Vaticano. De qualquer forma, essa descoberta não foi suficiente para conter a influência do gesto bandinelliano, já estabelecido e incorporado ao “tipo Laocoonte”, o mesmo que dominaria nas numerosas cópias do grupo esculpidas, pintadas e gravadas no final do Renascimento e na Modernidade.
A influência de Laocoonte e seus filhos em artistas posteriores é bem documentada e foi enorme. Basta destacar aqui que, na interpretação do grupo, Aby Warburg deixou pensamentos inéditos, discordantes em relação à tradição que o precedeu, dominada por Winckelmann e Lessing. Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), em seu Gedanken über die Nachahmung der griechischen Work in der Malerei und Bildhauerkunst (1755), sustentou que o sofrimento de Laocoonte revela sua alma: a agonia manifestada em cada nervo e músculo da contração do abdômen revela essa dor, sem a necessidade de olhar para o rosto ou outras partes do corpo. E ao mesmo tempo, essa agonia se expressa com uma atitude serena. O Laocoonte esculpido, ressalta Winckelmann, não emite um grito terrível, como relata Virgílio. A angústia corporal e a grandeza moral são igualmente apaziguadas em toda a estrutura da figura, que, por assim dizer, parece equilibrada. Seus sofrimentos inspiram nossas almas, e é por isso que admiramos a resistência deste grande homem. A violência contida na obra aparece, assim, enquadrada num estado de harmonia e repouso, que é o que predomina no conjunto.
Esta visão heróica de Laocoonte, quase triunfante, contrasta com a leitura mais estóica de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que, no seu Laocoonte, de 1767, seguindo Winckelmann, pergunta, especialmente interessado na discordância entre literatura e pintura, por que é que o Laocoonte de Virgílio grita de angústia enquanto a escultura de Laocoonte e seus filhos mal deixa escapar um suspiro de sua boca aberta? Laocoonte deve permanecer em silêncio, segundo Lessing, para preservar a beleza calma que toda escultura deve irradiar. Enquanto a literatura e até a pintura podem expressar vividamente sentimentos e ações, enchendo nossa alma de sons e forças, a escultura captura apenas as essências, preservando o que é eterno e imutável na ação representada.
O próprio Warburg (1866-1939), por sua vez, afasta-se dos traços idealizadores e apolíneos –emanados da Aufklärung, da qual também participaram Winckelmann e Lessing– fazendo uma leitura muito mais dionisíaca da obra, resgatando justamente o intenso fardo patético que o grupo condensa e transporta.
Vale aqui relembrar a crítica furiosa que Nietzsche fez a Eurípides na sua obra Nascimento da tragedia, o autor trágico que, ao contrário de Ésquilo e Sófocles – dramaturgos que sabem deixar que as forças antagónicas se choquem entre si, permitindo o conflito seguir o seu curso espontaneamente–, Eurípides torna-se, uma e duas gerações depois daqueles, um grande manipulador das emoções do público, distorcendo assim a arte própria das festas trágicas sagradas, nas quais se representavam sucessivamente tríades de tragédias, domínio de Apolo, e um drama satírico no fim, no qual Dionísio entrava em cena. A banalidade literária de Eurípides, que gerava emoções fatídicas e impulsivas por meio de conflitos arquetípicos, como os das novelas de televisão de hoje, trouxe o dionisíaco para o reino do apolíneo, destruindo assim a própria tragédia.
Warburg adverte que, em certa medida, isso também ocorre, no campo da arte, no barroco helenístico do qual emana o grupo de Laocoonte, no qual a exacerbação das emoções, através do uso de “superlativos” na expressão (isto é, exageros nos gestos de dor ou prazer, especialmente evidente em figuras esculpidas ou pintadas em posições não naturais e com contorções excepcionais), tem muito de falacioso e espúrio.
Como Vera Pugliese lucidamente aponta no artigo citado abaixo, a interpretação de Warburg é fortemente oposta à de Winckelmann, que, seguindo Vasari, insistiu em enfatizar o caráter racional da obra, celebrando suas proporções perfeitas, sua harmonia e até mesmo sua natureza divina e características sublimes. Warburg, por outro lado, concentra-se nas expressões de dor que resumem a obra, e na sua expressão como prelúdio da morte, ao mesmo tempo que exalta os movimentos convulsivos dos músculos do próprio Laocoonte, mostrando o seu esforço máximo para se libertar, inutilmente, da força do destino. O impulso aniquilador do dionisíaco ocupa para Warburg muito mais espaço no grupo de Laocoonte do que a moderação apolínea, apegada ao principium individuationis. Esta preocupação não era nova para ele, pois desde o início de seu trabalho Warburg procurou capturar as regras científicas da expressão e estava especialmente interessado em os superlativos na expressão artística (ou seja, aquelas instâncias em que o pathos, ou a emoção, são exacerbados, como pode ser visto no Laocoonte. Essa preocupação o desafiou a tal ponto, que ele tentaria mais tarde, com a ajuda de seus colegas da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg, encontrar os Pathosformeln (tipos específicos que adquirem as formulações do pathos (na arte da Tradição Clássica), uma questão central também no Atlas Mnemosyne.
Ernst Gombrich (1909-2001), na sua Aby Warburg – An Intellectual Biography, publicada em 1970, aproveita esta leitura nietzschiana de Warburg para exprimir – desenvolvendo, fiel ao seu positivismo como historiador da arte– uma interpretação simplificadora e psicologizante de Warburg, sustentando a ideia de que o fascínio que o tratado de Lessing exerceu sobre Warburg veio do protagonismo que este autor dava ao problema da expressão dos estados emocionais extremos (um assunto compreensível em um adolescente hipersensível, segundo Gombrich, sujeito a colapsos nervosos). Indignado com tais simplificações, Edgar Wind (1900-1971) criticaria Gombrich, num escrito famoso e controverso da review da obra que apareceu em The Times Literary Supplement um ano depois, salientando que, apesar da sua monumental e documentada biografia de Warburg, ele desconhecia profundamente o significado do seu pensamento. Essa crítica baseava-se em uma assimetria muito desconfortável para Gombrich: Wind tinha sido discípulo e colaborador de Warburg em sua Biblioteca, enquanto Gombrich nunca o conheceu pessoalmente.
O Laocoonte e seus filhos paulistano condecoraram,
presumivelmente sem interrupções,
Av. Nove de Julho entre 1938 e 1954.
Fotografia de Gabriel Zellaui (maio de 1953).
Agora, deixando de lado as reflexões dos pensadores que elevaram esse grupo escultórico a um ícone absoluto da expressão artística europeia, vale a pena perguntar: o que esse grupo evoca no transeunte distraído, que espontaneamente se depara com uma cena da qual nada sabe? A cena traz consigo, sem dúvida, a energia e a carga patética que a obra foi transportando e passando, como uma tocha, desde a Antiguidade, de observador a observador, na voz dos artistas que a replicaram. Evoca também, podemos imaginar, brasileiramente, a força imparável da natureza, que pode subjugar até os mais fortes, sem consultar seu kairós. Também evoca a tristeza de um pai que não consegue defender seus filhos, e de filhos que veem como seu pai é incapaz de dar a eles o que precisam. Ela evoca a contorção máxima, que é exercida na luta contra a morte. Ela evoca o poder do destino, quando ouvimos a história de um motociclista encurralado entre os ferros da Dutra. Também evoca que o ser humano está abaixo dos caprichos divinos, mesmo quando age com justiça e verdade. E evoca uma Antiguidade que, carregada de formas e paixões, nos transmite sua intensa carga emocional, para nos falar, finalmente, de nós mesmos.
Então o que diabos um Laocoonte está fazendo no Parque do Ibirapuera? Muito simples: ajuda-nos, como diz tão simplesmente Aristóteles na sua Poética, 6, 1449b28, a captar a essência da cena, para que nossa alma possa alcançar a purificação ou catarse dos afetos (kátharsis ton pathématon) que ela evoca.
Prof. Dr. Roberto Casazza
Universidad de Buenos Aires / Universidad Nacional de Rosario
Professor visitante na Universidade Federal de São Paulo
3 de fevereiro de 2025
Fotografias do Laocoonte e seus filhos no Parque do Ibirapuera.
Gombrich, Ernst, Aby Warburg. An Intellectual Biography, Chicago, The University of Chicago Press, 1986.
“Incêndio destrói acervo do Liceu de Artes e Ofícios em São Paulo”, O Globo, 4 de febrero de 2014.
Warburg, Aby, A presençã do Antigo – Escritos inéditos – Volume 1, organização, introdução e tradução de Cássio da Silva Fernandes, Campinas, Editora da Unicamp, 2018.
Winckelmann, Johann Joachim, Reflexões sobre Arte Antiga, Porto Alegre, Movimento, 1975.
Wind, Edgar, “Review of E. H. Gombrich, Aby Warburg: An Intellectual Biography (1970)”, The Times Literary Supplement, 25 June 1971, 735-736.