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Warburg e Renascimentos
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Warburg e Renascimentos
A ocorrência da representação da figura do homem nas imagens sacras em coleções de ex-votos no
Museu de Congonhas (MG)
Ex-voto - Santuário de Congonhas - Século XIX
O retorno à representação da figura humana como retrato, após o fim do Mundo Antigo, caracteriza-se como um processo e se confunde com a própria noção de Renascimento, entendido como época histórica. Antes, porém, que a figura do homem adquirisse a licitude e a dignidade de fazer parte das pinturas, representada em grupo de personagens ilustres ou de forma individual e autonomamente, sua inserção nas cenas sacras cumpriu um longo processo gradativo e sob perspectivas inteiramente particulares.
Um dos modelos nos quais essa retomada se dá, na Itália central, é o da representação dos doadores como devotos ajoelhados, nos retábulos de altar, que terá vida longa na tradição italiana, como de resto aparecerá com grande recorrência no inteiro universo da Cristandade Latina. Desde a aparição aos pés da Virgem Maria ou de seu santo patrono em dimensão bem menor que a figura sacra, até a figuração do retrato em pose de pia devoção, mais seguro sobre o ingresso de sua feição na sacralidade do espaço.
No curso dos séculos XIII e XIV, na Itália, as imagens sacras se afirmaram também como instrumentos ordinários de expressão da pietà pessoal, assim como da devoção coletiva. É certo que essas representações eram, na maioria dos casos, ainda desprovidas do princípio da semelhança, que caracteriza a figuração do retrato. O historiador da arte, Michele Bacci, escreveu um importante livro a respeito do tema, no qual indaga sobre quais funções foram atribuídas a esse tipo de representação, sobre quais percepções tiveram delas os seus contemporâneos, em quais contextos e quais finalidades rituais foram destinadas.
É significativo que, no período colonial brasileiro, este tipo de representação tenha encontrado lugar, tanto em ambientes de culto público, quanto no caso da devoção doméstica. Num texto de 1945, intitulado “Retratos Coloniais”, publicado na revista do SPHAN, a historiadora da arte, oriunda da Alemanha e de origem judia, Hanna Levy (1912-1984), aborda a ocorrência do retrato na arte do Brasil colônia. Hanna Levy, importa afirmar, é uma das principais responsáveis pela introdução dos conceitos do barroco na interpretação da arte colonial brasileira e por divulgá-los por meio do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), onde desenvolveu importante função durante anos. Nesse texto de 1945, último artigo seu publicado no Brasil, a historiadora da arte compreende a ocorrência do retrato pictórico, no contexto colonial brasileiro, entrelaçado às representações sacras. Após afirmar que “o retrato constitui, ao lado da pintura religiosa decorativa, a parte mais numerosa do patrimônio artístico brasileiro do período colonial”, Levy classifica em três os modelos de retrato produzidos nesse período da história no Brasil. O “retrato de burguês”, representando os principais membros das irmandades ou ordens terceiras, tais como provedores, fundadores, membros da mesa administrativa; o “retrato de erudito”, que figura personalidades da administração civil ou religiosa (figuras do clero); e o “retrato de família real portuguesa”, uma espécie de retrato oficial representativo, voltado a figurar menos os traços individuais do retratado e mais a sua posição social. Tratam-se, neste último caso, de retratos de administradores da Coroa, governadores de Províncias, membros da aristocracia e da alta realeza portuguesa em atividade na colônia.
Porém, após definir os três grupos, Hanna Levy se volta para o modelo de retrato que aqui nos interessa de perto. Seria o caso de afirmarmos que se trata de um quarto grupo, que aparece em seu texto como apêndice, classificado pela autora como situado “entre o retrato ‘puro’ e a pintura religiosa decorativa”. E completa:
Queremos referir-nos aos ex-votos de pinturas, as “mercês” que pessoas piedosas, curadas de doença ou salvas de perigo mandaram representar, em testemunho da graça recebida (Levy, 1945, p. 264).
Hanna Levy, então, interpreta esse grupo de representações no âmbito de seu estudo sobre o retrato no panorama da pintura colonial no Brasil. Ela afirma:
Esses trabalhos coloniais eram executados, via de regra, por artistas populares, pobres artesãos ou humildes “pintores” de acaso, e o retrato seria uma tarefa muito superior às suas fôrças. Por certo, seus clientes não seriam muito rigorosos em matéria de arte. O que tinham em vista era tão sòmente a lembrança do milagre verificado. Tornava-se pois necessário ao artista encontrar uma solução que, contornando as dificuldades da fatura de um verdadeiro retrato, satisfizesse o desejo do piedoso cliente.
A solução do problema foi conseguida de maneira bem simples, pela criação de uma espécie de pintura de gênero, ou anedótica, que, embora primitiva e rudimentar, oferece ao observador de hoje muitos elementos não identificados nos retratos coloniais nem tampouco na pintura religiosa daquela época. Os humildes artistas de ex-voto adotaram o expediente de traçar uma vaga e sumária aparência de retratado da pessoa ofertante, aplicando-se, em compensação, a uma descrição bastante minuciosa das circunstâncias em que se operara o acontecimento prodigioso (Ibidem, pp. 264-265).
Não saberia precisar o quanto essa parte do texto de Hanna Levy tenha impactado a historiografia da arte no Brasil nesses 80 anos que nos separam dele. É significativo, no entanto, que o Museu de Congonhas, em Minas Gerais, tenha apresentado, em 2012, o catálogo intitulado “O Resgate de Duas Coleções”, com ex-votos produzidos no período colonial em Minas Gerais do ciclo do ouro, numa permanência (em longa duração) que avança pelo século XIX e vai até o começo do século XX. As peças compõem as coleções “Sala dos Milagres do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos” e “Coleção Márcia de Moura Castro”, ambas adquiridas pelo IPHAN e apresentadas ao público por meio dessa significativa publicação.
Aqui se tem acesso a um conjunto de obras que faziam parte do modelo de representação à qual se referia Hanna Levy, no artigo de 1945, como um meio caminho entre pintura religiosa e representação retratística na arte brasileira do período colonial. Despertam interesse as características de circulação e de longue durée de um tipo de representação que se apresentava na arte medieval centro-itálica, presente como uma sobrevivência nas Minas Gerais do século XVIII, seguindo ainda até o início do Novecentos. No referido catálogo, há menção ao estudo realizado pela historiadora da arte a respeito desses ex-votos.
Vejamos, então, alguns exemplos desse modelo figurativo.
Ex-votos - Museu de Congonhas - Século XVIII
Cássio Fernandes
Universidade Federal de São Paulo
01 de outubro de 2025
Bacci, Michelle. “Pro rimedio animae.” Immagini sacre e pratiche devozionali in Italia centrale (secoli XIII e XIV). Pisa: Edizioni ETS, 2000.
Levy, Hannah. Retratos Coloniais. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, v. 9, 1945.
LEVY, Hanna. Henri Wölfflin. Sa théorie. Sés prédécesseurs. Rottweil: Rothschild, 1936. (Tese defendida em Paris.)
LEVY, Hanna. Modelos europeus na pintura colonial. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 8. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, p. 7-66, 1944.