Blog
Warburg e Renascimentos
Blog
Warburg e Renascimentos
O tempo em que Proust era cor de esmalte
Leia aqui a versão em inglês / Read here the English version
Toda comunicação cotidiana é condicionada por uma relação de hábito com as palavras, de modo que são poucos os nomes em nossa rotina que conseguem nos surpreender. Quão trivial é escrever na lista de mercado “maçã”? E escutar “amor”, de significado mais denso e controverso, em uma canção? E mesmo se juntarmos as duas, que imagens além do doce de festa junina podem vir à mente?
A situação parece se reconfigurar quando contemplamos essas mesmas palavras na etiqueta de um esmalte. Observo o “maçã-do-amor”. Embora compreenda a lógica, me estranha um doce convertido em tinta que, mais adiante, se inscreverá em unhas. E o “amor”? Imediatamente, a palavra perde seu teor habitual e me pergunto se amor se parece com vermelho, porém perolado e mais claro que o do doce. “Toque de Ira”, “Ver de Verdade”, “Hippie Rua”, revelam uma operação de nomes para cores e cores para os nomes que nos conecta à histórica insistência humana por classificar o inefável (não teria sido a primeira tarefa do homem nomear todas as coisas?). Por outro lado, salta-me aos olhos que esse mesmo anseio pode ter produzido rótulos de esmalte como “Último Doritos do Pacote”, “Daily Vlog” e “Netflix Tudum”.
Uma gerente da Colorama tenta explicar o ritual de nomeação das cores por meio do equilíbrio entre as exigências do capitalismo e a missão de acolher inquietações existenciais: “o boom dos nomes criativos vem da necessidade de as marcas se diferenciarem em um mercado competitivo. Os esmaltes são mais do que produtos de beleza: são um atributo de expressão pessoal”. Não me convence, porém, que alguém escolha a cor da sua unha com a intenção de expressar seu gosto pessoal por salgadinhos de milho sabor queijo nacho. Portanto, a não ser que o marketing realmente tenha sido capaz de ressubstancializar o verbo e com isso retomar a conexão íntima entre um nome, um tom específico de laranja e a sensação de se ver diante do último salgadinho de um pacote, estamos simplesmente tratando de um generoso acordo comercial.
Mas há ainda uma terceira linhagem de nomes. “Complicada e perfeitinha”, “Tá passada?”, “Didididiê” ou “Risoto de Mandioquinha”, nem exemplares diretos da busca por decifrar a ordem das coisas nem a necessidade de cumprir com estratégias de propaganda casada: títulos que buscam estimular o consumo por meio da analogia entre uma cor e um produto cultural popular. Parece-me tratar-se desse terceiro caso uma propaganda da Dior de 1977:
“Cores sensíveis e emocionais para lábios e unhas inspiradas em Marcel Proust ‘Les Rouges des Swann’”
Lá está: mais uma cor de esmalte (e de batom). A Dior acreditou ser uma boa estratégia de marketing usar o nome e a obra de um escritor que, ainda que canônico, foi pouco lido e é frequentemente descrito como de difícil fruição (ou, segundo matéria da BBC, “o romance mais difícil do mundo”). Não sendo fruto de um acordo comercial, a crença do marketeiro no potencial de mercado de À la recherche du temps perdu nos evidencia a posição de destaque da obra no caldo cultural de certa elite que, ao menos em 1977, ainda prezava por se fingir ilustrada.
O uso mercadológico de Proust, no entanto, não se restringiu a produtos de luxo. Esquetes do Mounty Python, roteiros de viagem, livros de culinária e de autoajuda evidenciam uma proustomania que se disseminou a partir de meados do século XX. É esse Proust transformado em mercadoria de consumo na cultura contemporânea que Margaret Gray analisa no último capítulo dePostmodern Proust de 1992. Seu argumento é que a relação do “sujeito pós-moderno” com o romancista se dá pela redução deste a um objeto de consumo, regido quase exclusivamente pela lógica da kitschificação e da fetichização. Tal processo, segundo a autora, acaba por apagar a autonomia da criação proustiana, deixando apenas uma “idolatria do significante” e uma obra esvaziada de sua potência original, de sua aura.
Ao encarar o kitsch como uma inadequação estética em relação à obra original, a autora retoma A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, texto em que Walter Benjamin sustenta como o modo moderno de percepção, guiado por um desmedido mecanismo de semelhança, resulta na perda de aura dos objetos artísticos. Isto é, essa forma de percepção, ao buscar incessantemente aproximar a obra de arte por meio de cópias e reproduções, torna o espectador incapaz de estabelecer a distância necessária para reconhecer as singularidades daquilo que consome. Para Gray, isso nos torna alheios às intenções e aos propósitos culturais originais da obra, substituindo a contemplação pela familiaridade e o sentido pela repetição fetichizada.
Porém, não parece incorreto afirmar que a própria possibilidade de criticar um consumo pautado pela kitschificação e pela fetichização dos objetos só pode sustentar-se em um fetiche: a ideia de que existe um sentido inato, ancorado na tal intenção cultural original. Esse é o diagnóstico de Jorge Coli sobre a noção de aura de Benjamin, classificada como “misticismo fetichista” de origem “fortemente romântica”.
Após elencar exploradores da “terceira margem do rio, onde invisíveis, imateriais, o semelhante se funde no semelhante, onde a analogia se metamorfoseia em fusão”, como é o caso do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, da qual a condição de sua existência foi o uso das reproduções de originais, Coli encontra em Proust aquele que melhor expressou uma oposição à noção de aura de Benjamin. Para ilustrá-la, Coli remonta ao segundo livro da Recherche, quando o narrador enfim consegue realizar seu desejo incurável de conhecer a igreja de Balbec e ficar diante da Virgem de seu pórtico, que até então só havia contemplado por fotografias e moldes. Porém, ao deparar-se com a Virgem original, ele não vivencia uma experiência sublime como era o esperado. Encontrando-a em seu estado original, “reduzida agora à própria aparência de pedra”, “submetida à tirania do Particular”, lhe vem apenas a decepção.
Contradizendo Benjamin, é a experiência com a obra de arte autêntica que lhe retira a aura que havia sido construída pelas reproduções. A cópia, ao contrário de estabelecer uma relação necessária com a perda da “autonomia estética” do original, é a condição de possibilidade da contemplação estética, pois tal contemplação não está simplesmente ancorada a uma verdade produzida pelo original. Este não é um guardião da aura, mas sim um dos elos da corrente de semelhanças que conduzem à verdade da obra de arte, das quais também fazem parte suas várias reproduções, materiais ou imaginárias.
O choque entre as abordagens de Gray, apropriando-se de Benjamin, e Coli fica evidente no modo em que tratam o personagem de Swann, do qual nome foi usado no esmalte da Dior. No início da Recherche, acompanhamos de perto a vida de Charles Swann e somos apresentados ao seu hábito de reconhecer os rostos das pessoas que o cercavam nas figuras de retratos dos mestres pintores. Esse pensamento analógico contumaz é constatado quando Swann reconhece semelhança entre Odette – sua cocote, que até então lhe despertara pouca admiração estética – e a figura de Séfora, presente no afresco As provações de Moisés de Botticelli. Essa operação resulta em Odette ser investida de um encanto e de um fascínio novos, ponto de partida para obsessão de Swann que será o mote da parte do livro que lhe é dedicada.
As provações de Moisés, Botticelli 1481-1482.
Séfora se encontra no plano mais à frente, ao centro, segurando uma haste, com um rosto ligeiramente inclinado para baixo.
Segundo o ponto de vista de Gray, a produção dessa semelhança faz de Swann a encarnação de um kitschman, que invés de contemplar a pessoa real prefere substituí-la por uma gratificação narcísica. Assim Proust, , por meio de seus personagens, demonstraria, em antecipação, a lógica de consumo de nossa contemporaneidade. A abordagem de Coli é oposta. Afinal, foi apenas devido à superposição Odette-Séfora que o amor e o casamento de Swann se tornam possíveis, já que o que era visto como um rosto sem características muito admiráveis acaba por, nas palavras de Coli, “[incorporar-se] à eternidade de uma obra de arte”. Ao contrário da destruição da alteridade por meio da projeção narcísica do sujeito em seu objeto de desejo, o personagem de Swann demonstra que
Semelhanças e analogias criam uma substância artística maior do que seus limites materiais. As obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos num tecido amplo de outras obras, ou, como no caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma percepção que a transforma em arte. Essas obras não são feitas apenas de um original. Dela fazem parte, como elemento constitutivo profundo, e não como sucedâneos desprovidos de alma, a reprodução, a marca deixada na memória, todas as formas de representação, ou antes, de re-apresentação, todas as formas de associações presididas pela semelhança. Material e imaterial, a obra é tudo isso, é feita de tudo isso.
Se Proust é construído efetiva e continuamente a partir de seu consumo e recepção, é impossível sustentar a kitschificação de Proust como um desrespeito ao sentido original. Ele só é tratado como kitsch pois é uma obra levada ao extremo de sua própria recepção: seu capital simbólico se tornou tão relevante e tão facilmente transformado em capital econômico que todos querem possui-lo. Proust é um caso radical – tal como a Mona Lisa – daquilo que toda obra de arte pode vir a se tornar.
Partindo da perspectiva de Coli, é possível contemplar as reproduções kitsch de Proust – em especial a propaganda da Dior – de modo distinto da ideia de mera degeneração de sua obra. Elas significam menos a sua decadência quea confirmação de sua permanência. Acrescento que, ao invés da familiaridade, me deparei com a mais radical alteridade, ao descobrir um Proust utilizado para nome de cor de esmalte: é impossível uma propaganda dessas existir nos tempos de hoje. Não só para Proust, mas para qualquer livro (ainda que eu tenha encontrado esmaltes de títulos como “Livros inesquecíveis”, “Livros de encanto”, etc.). Se, para Gray, tal nome vinculado à cor de esmalte representa uma agressão ao original, para mim, irradia aura, até mais intensamente do que as primeiras edições de À la recherched du temps perdu que não raro encontro nas bibliotecas. Essa propaganda (ou melhor, a fotografia dela) transformou-se em objeto encantado: vestígio de um tempo irrecuperável em que a literatura servia de estratégia de marketing; em que um romance difícil e sublime pôde, por um instante do século passado, integrar a cultura de massa; em que havia desejo intenso em consumi-lo, ainda que apenas para fagocitá-lo em nome do capitalismo.
Assim como cada sopa e tinta jogada nas pinturas de museus só aumenta o anseio em visitá-las, aquilo que parece desrespeitar o “cânone” é exatamente o que produz a aura que, de outro modo, caso simplesmente deixado incólume, aos poucos se esvairia. O desaparecimento dessas instâncias de propagação da energia da obra atesta para um derradeiro fim da própria, pois o cânone dura somente enquanto durar o feitiço. Afinal, o que sobra para nós, no presente? Esmalte cor salgadinhos de milho? E para o futuro? Esmalte cor “Jogo do Tigrinho”? Entre as possibilidades disponíveis no estado atual da nossa cultura, tudo o que eu gostaria de ver era um Proust kitschificado.
Dhyan Ramayana
Universidade Federal do Rio de Janeiro
11 de dezembro de 2025
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (primeira versão). In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CASTRO, Mayra. ‘Lágrimas do crush’, ‘Bah, guria’ e ‘Laçada perfeita’: esmaltes têm boom criativo e nomes para atrair consumidoras. O Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/negocios/noticia/2025/02/09/lagrimas-do-crush-bah-guria-e-lacada-perfeita-esmaltes-tem-boom-criativo-e-nomes-para-atrair-consumidoras.ghtml. Acesso em: 13 de nov. de 2025
COLI, Jorge. Reflexões sobre a ideia de semelhança, de artista e de autor nas artes: exemplos do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, jul. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ha/coli.htm. Acesso em: 18 nov. 2025.
GRAY, Margaret E. Postmodern Proust. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.
POUND, Cath. Why the world's most difficult novel is so rewarding. BBC, 14 ago. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/culture/article/20220812-did-proust-write-the-greatest-novel-of-the-20th-century. Acesso em: 13 nov. 2025.
PROUST, Marcel. À sombra das moças em flor. Tradução: Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.