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Warburg e Renascimentos
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Arte e Magia: A Primavera de Sandro Botticelli segundo Frances Yates
Leia aqui a versão em inglês / Read here the English version
A Primavera. Sandro Botticelli, 1480 Têmpera sobre madeira, 203 x 314 cm Galleria Uffizi, Florença.
As figuras etéreas da Primavera de Sandro Botticelli (1445-1510) flutuam não apenas em museus, mas também em nosso cotidiano. Vemos Vênus, Flora e as Três Graças estampadas em objetos que vão de capas de caderno a peças de vestuário, transformadas em ícones familiares de uma estética renascentista que parece transcender o tempo. Por trás da familiaridade de suas imagens, reside, no entanto, uma igual profusão de debates acadêmicos que buscam decifrar as obras de Botticelli e seus significados para seus contemporâneos florentinos do século XV.
Um ponto de partida fundamental da mudança na forma como a História da Arte passou a encarar obras como A Primavera encontra-se no trabalho de Aby Warburg (1866-1929). Sua tese de doutorado de 1892, O Nascimento da Vênus e A Primavera de Sandro Botticelli. Uma investigação sobre as concepções de Antiguidade no início do Renascimento italiano, foi mais do que um estudo sobre duas pinturas; lançou as bases para um programa investigativo focado na Nachleben der Antike – a sobrevivência da Antiguidade nas culturas subsequentes, especialmente no Renascimento italiano. Este programa se materializaria na Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg, hoje o Warburg Institute em Londres.
Provável autorretrato de Sandro Botticelli Adoração dos Magos (detalhe), 1485-1486 Óleo sobre tela Galleria Uffizi, Florença.
Ao analisar A Primavera e O Nascimento de Vênus, Warburg lançou as bases de seu método comparativo, buscando entender quais aspectos da antiguidade eram de particular interesse para os artistas do Quattrocento (WARBURG, 2015). Sua contribuição específica, delineada através da correlação que fez entre a poética contemporânea, através dos textos de Angelo Poliziano (1454-1494), em especial Giostra e Rusticus, e as imagens produzidas no contexto da família Médici, fora uma das formas pelas quais o Renascimento se apropriou da Antiguidade pagã. Assim, encontrando um substrato social para as relações expressas entre texto e imagem, Warburg postulava que a representação de acessórios dinâmicos – cabelos esvoaçantes, vestes agitadas pelo vento – não era um mero floreio decorativo, mas uma forma deliberada de intensificar a vitalidade e o conteúdo emocional das figuras a partir de referências antigas retomadas pelo humanismo.
Angelo Poliziano Domenico Ghirlandaio, Zacarias no Templo (detalhe), 1486-1490 Afresco Santa Maria Novella, Cappella Tornabuoni, Florença.
Em outros trabalhos, Warburg aprofundaria as correlações das artes com outras campos da cultura, de modo a inventariar as próprias formas como tais respectivas dimensões estavam distribuídas na Renascença. Na contramão de um certo esteticismo que muitas vezes desconsiderava o simbolismo, ele voltou-se para a importância que patronos e artistas atribuíam a temas pagãos. Dessa forma, Warburg intuía que o recurso à mitologia antiga no Renascimento frequentemente envolvia um mergulho em camadas mais profundas de significado, ligadas à filosofia, à astrologia e à magia.
A abordagem interdisciplinar e a valorização das correntes menos evidentes do pensamento renascentista, cultivadas no ambiente do Instituto Warburg, ressoariam no trabalho de estudiosos subsequentes. Entre eles, Ernst H. Gombrich (1909-2001), figura proeminente e diretor do Instituto de 1959 a 1976, dedicou-se à análise da obra primeiramente em um artigo intitulado Botticelli’s Mythologies, no qual postulava buscar uma "interpretação mais estritamente histórica" (GOMBRICH, 1945).
Sua contribuição metodológica reside na formalização da ideia de um programa intelectual elaborado por um humanista para o artista. Concentrando-se em Marsilio Ficino (1433-1499) como "mentor espiritual" de Lorenzo di Pierfrancesco de' Medici, Gombrich argumentou que a pintura deveria ser compreendida à luz do neoplatonismo ficiniano. Ele propôs a figura da Venus-Humanitas como tema central, uma Vênus que simbolizava não apenas o amor e a beleza, mas também uma virtude moral e intelectual capaz de elevar o espírito humano. Essa interpretação estabeleceu o quadro neoplatônico como uma chave interpretativa fundamental para decifrar A Primavera, enfatizando seu conteúdo filosófico.
Marsilio Ficino Domenico Ghirlandaio, Zacarias no Templo (detalhe), 1486-1490 Afresco Santa Maria Novella, Cappella Tornabuoni, Florença.
Ainda que um dos seus críticos mais contundentes, é na mesma trilha neoplatônica que podemos agregar Edgar Wind (1900-1971), assistente de Warburg e vice-diretor do Instituto de 1934 a 1939, a essa genealogia de leituras da Primavera. Em Pagan Mysteries in the Renaissance (1958), Wind propôs um exame das alegorias filosóficas que acreditava estarem codificadas na arte renascentista para um círculo de iniciados. Sua interpretação da Primavera focou em como a pintura visualizava doutrinas específicas, como a dialética do amor no grupo de Zéfiro, Clóris e Flora, onde a Beleza (Pulchritudo) emerge da união harmoniosa de opostos.
Wind reforçou a ideia da Primavera como uma obra de particular interesse, onde cada elemento servia para articular argumentos filosóficos derivados de fontes clássicas e ficinianas. Ao destacar a noção de "mistérios pagãos" velados em formas mitológicas, ele sublinhou a natureza esotérica presente em uma parte considerável da cultura renascentista, contribuindo para a percepção de que as pinturas de Botticelli poderiam conter camadas de significado que transcendiam o decorativo ou o narrativo.
É sobre este alicerce, construído a partir das investigações de Warburg e das leituras focadas no neoplatonismo por Gombrich e Wind, que Frances A. Yates (1899-1981) desenvolve sua interpretação da Primavera. Associada ao Instituto Warburg de 1938 até sua morte, Yates desenvolveu uma forte ênfase nas dimensões mágicas e herméticas do pensamento renascentista, áreas até então pouco abordadas pela historiografia. Em sua obra Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (1964), ela oferece uma perspectiva particular da compreensão da função da arte no círculo de Ficino.
Ancorada a centralidade do neoplatonismo florentino e com foco no terceiro livro de sua obra De vita libri tres, intitulado De vita coelitus comparanda (Sobre como obter vida dos céus), de Ficino, sua análise detém-se sobre este tratado de medicina, integralmente permeado por magia astral. Nele, Ficino detalha a construção de talismãs – imagens, objetos e outros artifícios – sob configurações astrológicas específicas, visando atrair e canalizar as influências benéficas dos planetas e das estrelas para promover a saúde, o bem-estar etc. O mundo postulado no tratado de Ficino organiza-se como um agente vivo, a exemplo dos tratados herméticos, também traduzidos por ele na segunda metade do século XV, e é perpassado pelo spiritus mundi, veículo das qualidades astrais. Os talismãs, confeccionados corretamente com materiais, cores, formas e imagens em simpatia com um determinado astro, poderiam atrair e concentrar esse spiritus planetário.
Para Yates, A Primavera de Botticelli, com sua atmosfera encantada e a proeminência de Vênus, encaixava-se perfeitamente neste contexto. Ela propôs que a pintura não era apenas uma alegoria da Vênus-Humanitas filosófica, mas uma "imagem predominantemente venusiana, que reflete o tipo de magia ficiniana" (YATES, 2007). A função da "Alma Venus" de Botticell, segundo Yates, seria análoga à de um talismã: "atrair o espírito venéreo do astro e transmiti-lo ao portador ou observador de sua imagem adorável" (YATES, 2007). Para sustentar essa leitura, Yates, além de agregar outros textos pagãos recuperados por humanistas, ancorava-se nas relações sociais entre Botticelli e Ficino por meio da figura de Lorenzo d’Médici.
Essa interpretação lançou uma nova luz sobre cada elemento da pintura. A figura central de Vênus não seria apenas alegórica, mas o foco de uma operação mágica. As Três Graças, em sua dança harmoniosa, poderiam representar a distribuição dessas influências benéficas. O grupo de Zéfiro, Clóris e Flora, simbolizando a transformação e a fecundidade trazidas pela primavera, reforçaria o poder gerador e vitalizante da imagem, especialmente sob a égide de Vênus. A profusão de flores e plantas meticulosamente representadas, muitas das quais tinham associações astrológicas e medicinais específicas na farmacopeia renascentista, também contribuiria para a eficácia talismânica da obra.
Dessa forma, Yates levou à cabo uma série dos pressupostos de Warburg sobre as "práticas platônico-mágicas", fornecendo a base textual e conceitual para entender como uma obra de arte poderia ter sido concebida também com uma função operativa. Ao deslocar o foco interpretativo da representação para a função e a eficácia, ela abriu um novo paradigma para o estudo da arte renascentista. Sua leitura não invalida as camadas alegóricas ou filosóficas, mas as integra numa compreensão mais abrangente, onde a arte é vista não sob o olhar da familiaridade que sentimos diante dessa imagem, reconfigurando nossa compreensão da própria natureza da arte e do pensamento no Renascimento.
Apesar de menos difundida, a leitura de Yates, que, tal como aparece no livro de 1964, não chega a formalizar-se como mais uma interpretação da Primavera, tem a virtude da generosidade do estranhamento. Ao invés de reduzir a pintura a um simples objeto mágico, sua perspectiva a enriquece, revelando-a como um artefato culturalmente denso, onde a beleza estética, a profundidade filosófica e a intenção mágica se entrelaçam de forma inextricável. Ela nos lembra que, para os humanistas florentinos, o universo era um campo de forças sutis e que a arte poderia ser um meio de harmonizar o ser humano com o cosmos. A Primavera de Botticelli, sob essa luz, emerge não apenas como um ícone da estética renascentista, mas como um portal para uma visão de mundo reencantada, onde a imagem possuía o poder de influenciar a realidade. O legado de Yates, portanto, é o de nos convidar a uma escuta mais atenta das fontes do passado, a explorar com independência intelectual as dimensões menos óbvias da história cultural e a reconhecer a complexidade das motivações e crenças que animaram a criação artística em outros tempos.
Lucas Augusto Pietra
Universidade Federal de São Paulo
30 de maio de 2025
GOMBRICH, E. H. Botticelli’s Mythologies: A Study in Neoplatonic Symbolism of His Circle. Journal of Warburg and Courtland Institutes, Vol. 8, pp. 7-60, 1945.
WARBURG, Aby. O Nascimento da Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli. Uma investigação sobre as concepções de Antiguidade no início do Renascimento italiano. In: Histórias de Fantasma para Gente Grande: Escritos, Esboços e Conferências. Trad. Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo, Companhia das Letras, 2015.
WIND, Edgar. Pagan Mysteries in the Renaissance. New Haven: Yale University Press, 1958.
YATES, Frances (1964). Giordano Bruno and the Hermetic Tradition. London: Routledge, 2007.