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Warburg e Renascimentos
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Imagens através do tempo: Warburg, Focillon e Kubler
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Abordaremos neste texto três autores que, em suas pesquisas, estiveram às voltas com a vida ou a recorrência de algumas formas ao longo do tempo. Para compreenderem esse fenômeno, voltaram-se ao estudo das transformações, da latência e da permanência das imagens.
Henri Focillon
Começando por Henri Focillon, em A vida das formas ele nos lembra de um dado elementar e mesmo óbvio, mas que nem sempre recebe a devida atenção por parte de historiadores da arte. Ele diz: “[...] o conteúdo fundamental da forma é um conteúdo formal. Ao contrário do que se poderia pensar, que a forma fosse o revestimento acidental do conteúdo, são as diversas acepções deste último que são incertas e mutáveis” (FOCILLON, 1934, p. 5). A forma é o que de mais palpável e constante temos, não obstante a ação do tempo que, inevitavelmente, atua sobre os objetos e os modifica. Já o conteúdo simbólico atribuído a uma imagem, embora tenha tido um significado específico no momento de sua criação, transforma-se com o passar do tempo: é complementado, alterado, corrompido, ignorado ou mesmo esquecido pelas gerações que recebem as imagens (cf. SAXL, 1970).
Por misteriosos e variados motivos, algumas imagens – algumas formas – têm mais fortuna que outras. Sem considerar aqui questões relativas à “vocação formal” que a matéria pode ter, isso muitas vezes tem relação com sua autoria. Todo objeto artístico é o resultado de uma ação humana, de uma intenção do espírito. Efetivamente, Focillon entrelaça arte e vida em sua obra. Faz isso para contestar a ordenação cronológica, para mostrar que o tempo histórico é irregular e imprevisível. Para ele, “A História é geralmente um conflito de precocidades, atualidades e atrasos” (FOCILLON, 1934, p. 82). Por conta desse descompasso, ele nos faz ver que contemporâneos não são meramente aqueles que existem na mesma época, que pertencem ao mesmo contexto cultural, e ainda nos ensina que não se pode dar como certo que uma determinada geração tenha exercido mais influência sobre a que se lhe seguiu do que outra muito anterior. Segundo Focillon, há um fator que ultrapassa as fronteiras cronológicas e geográficas, algo que congrega os espíritos separados por essas barreiras: é o que ele chama de famílias espirituais. Todo artista cria sua própria família através do tempo e do espaço.
Se agora dermos um passo adiante e deixarmos de lado os nomes dos indivíduos que integram essas famílias, restarão somente os objetos artísticos por eles produzidos. E assim como acontece com os espíritos, esses objetos também se procuram movidos pela lei das afinidades eletivas. Sem deixar de examinar aspectos naturais, culturais, sociológicos e econômicos que envolvam as obras – assim como, aliás, fazia Focillon –, cabe àqueles que trabalham com imagens interpretar esse sistema e promover essas aproximações, criando, desse modo, uma espécie de álbum de imagens afins. Enfim, esse é um meio para se compreender a longevidade de certas formas.
Focillon publicou A vida das formas em 1934. Na Europa daquele período, temas como os levantados por ele estavam no ar. Uma característica bastante específica das ciências humanas é que, se um mesmo problema for dado a diferentes indivíduos, eles o solucionarão não apenas em mais ou menos tempo e através de caminhos diversos, como acontece nas ciências exatas ou biológicas, mas também obterão resultados diferentes. Foi o que ocorreu alguns anos antes, quando Aby Warburg se deparou com essas questões.
Aby Warburg
Warburg partiu de pressupostos distintos de Focillon. Em vez assumir que se tratava unicamente de um problema que envolvia tradições formais, preferiu supor que havia ali uma questão de psicologia coletiva (GOMBRICH, 2003, p. 261).
Warburg começou a pensar no projeto Mnemosyne em 1924, dedicando-se mais intensamente à sua realização a partir de 1927. Em 1929, ano de sua morte, chegou a escrever um esboço para uma introdução ao projeto, o qual confiou a Gertrud Bing (publicado em português em WARBURG, 2009). Na prática, Warburg substituiu as grandes mesas sobre as quais os historiadores da arte dispunham e comparavam fotografias por painéis pretos em que fixava grupos de imagens, sendo que as combinações podiam ser alteradas constantemente.
De lá para cá, o interesse por esse projeto só tem aumentado, o que é bastante compreensível, sobretudo ao considerarmos as transformações tecnológicas ocorridas mais recentemente. Na atualidade, os painéis warburguianos foram substituídos por pastas em computadores pessoais. Além disso, uma simples busca por imagens com auxílio de uma ferramenta digital oferece instantaneamente uma infinidade de imagens semelhantes. As formas contemporâneas de pensar mantêm, ao menos superficialmente, uma grande proximidade com as ideias que Warburg estava desenvolvendo.
Com o Atlas Mnemosyne, Warburg alimentava a esperança de conseguir apresentar sua ciência da cultura através de imagens, dispensando quase que totalmente as palavras (GOMBRICH, 2003, p. 59). Tratava-se de um derradeiro passo, um projeto que representava a conclusão de uma vida dedicada a pesquisas em arquivos e bibliotecas e ao contato direto com as obras. Contudo, se, por um lado, o Atlas constitui um quadro sintético e conclusivo de uma longa e rica trajetória intelectual, por outro, não se pode negar que ele tem a aparência e as características de um projeto ainda em fase inicial, como se se tratasse de imagens aproximadas formalmente com o intuito de dar início a um novo trabalho. De fato, esse é um erro comum a muitas pessoas que se interessam por esse método proposto por Warburg. O Atlas pode ser início, mas é principalmente fim. Entre uma fase e outra, há a pesquisa, a qual deverá comprovar se as ideias primeiras resistiram até o final.
Portanto, para seguir com Warburg na criação de um Atlas ou, se quisermos, na curadoria de uma exposição, há sempre que se prestar muita atenção à escolha das imagens que vão compor seus painéis, suas seções. Warburg afirma que “Com seus materiais visíveis, o Atlas Mnemosyne pretende justamente ilustrar esse processo que poderia ser definido como a tentativa de incorporar interiormente valores expressivos que existiam antes da finalidade de representar a vida em movimento” (WARBURG, 2009, p. 126). Queria ilustrar as matérias às quais dedicou grande parte de sua vida, isto é, a sobrevivência das divindades olímpicas na tradição astrológica e de determinadas formas de expressão: como eram incorporadas pelos indivíduos, transmitidas através de imagens, e por que reapareciam em intervalos irregulares. Havia, portanto, uma questão norteadora que justificava e unificava a escolha, e é essa questão que precisa estar clara – seja em sua manutenção, seja em sua reelaboração – sempre que o Atlas for reativado.
George Kubler
Como terceira resposta à longevidade de algumas formas, gostaria de apontar para as sequências formais propostas por George Kubler em A forma do tempo, livro publicado em 1962. Aluno de Focillon, Kubler recusou as sequências biológicas de duração contínua e ininterrupta. Em seu lugar, considerou que os objetos devem ser reunidos em sequências intermitentes e variáveis, não lineares, tendo como critério aglutinador o fato de que todos representam respostas formais a um mesmo problema. Para ele, a comparação entre esses objetos cria uma “forma no tempo”.
De fato, Kubler assume que toda obra de arte relevante representa “uma solução duramente encontrada para um problema” (KUBLER, 1970, p. 33). Se voltarmos ao que foi dito pouco acima sobre a peculiaridade das ciências humanas, Kubler tem plena consciência de que um mesmo problema deve ter recebido várias soluções ao longo do tempo. Todavia, ele entende que o acúmulo de soluções acaba por gerar uma cadeia de respostas que, por fim, resolverá o enigma. Naturalmente, não se trata de um resultado definitivo, pois as sequências de Kubler estão sempre abertas, seja para receber outras soluções dadas por novos artistas, seja porque se percebeu que determinada obra do passado, até então ignorada, também acrescentava uma resposta ao problema.
Para encerrar essas brevíssimas considerações, vale destacar algumas das muitas contribuições de nossos autores. Kubler interessou-se pelas quebras e rupturas em vez das continuidades, incorporou todos os objetos produzidos pelo ser humano ao campo de atuação da História da Arte e, sem fazer distinção entre ideias e formas, considerou que existem exemplares originais e réplicas, todos à espera de interpretações. Focillon, ultrapassando as limitações do tempo e do espaço, agrupou as imagens e seus produtores em função de afinidades formais e espirituais. Quanto a Warburg, seu Atlas apresentou-nos uma cartografia da memória cultural, um repertório de referências visuais para um mais apurado entendimento de uma psicologia das expressões humanas. O Atlas pode então ser visto como um “teatro da memória”, um dispositivo que, se utilizado corretamente, proporcionará uma infinidade de associações e descobertas a seus usuários.
Com seus exemplos, esses três historiadores da arte nos ofereceram meios para a compreensão da arte para além de cronologias lineares ou de territórios fixos. Conduziram-nos às portas de uma história da arte que se integra a uma geografia da arte, em que as arbitrárias organizações cronológicas ou estilísticas dão lugar a modos de pensar mais complexos, mais permeáveis. São possibilidades. Que tenhamos coragem e sabedoria para seguir por esses caminhos.
Alexandre Ragazzi
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
16 de junho de 2025
FOCILLON. Henri. Vie des formes. Paris: Ernest Leroux, 1934.
GOMBRICH, Ernst H. Aby Warburg – Una biografia intellettuale. Milano: Le Comete/Feltrinelli, 2003.
KUBLER, George. The shape of time. Remarks on the history of things. New Haven/London: Yale University Press, 1970.
SAXL, Fritz. “Continuity and variation in the meaning of images”. In: A heritage of images. A selection of lectures by Fritz Saxl. Harmondsworth: Penguin Books, 1970, pp. 13-26.
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2010.
WARBURG, Aby. “Mnemosyne”, Arte & Ensaios, v. 19, n. 19, 2009, pp. 125-131.