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Warburg e Renascimentos
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Warburg e Renascimentos
A academia de Leonardo que nunca existiu
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Leonardo da Vinci. Dama com Arminho (1483-1490). Óleo e têmpera sobre madeira, 54,8 x 40,3cm. Cracóvia, Muzeum Książąt Czartoryskich w Krakowie.
Quando mencionamos ateliês ou colaborações em bottegas, estamos, de fato, reexaminando as relações estabelecidas entre artistas que trabalhavam conjuntamente durante o Renascimento na Itália. Diferentemente do que observamos no século XIX, no Renascimento não testemunhamos artistas solitários criando obras de arte de acordo com seus próprios gostos ou vontades. Como Martin Kemp afirma, o Renascimento foi “uma época que não esperava que seus artistas fossem gênios solitários trabalhando erraticamente sobre os produtos únicos de sua criatividade individual” (Kemp, 2007, p. 21). Na Itália, é notável que a encomenda precedia a criação da obra, e os contratos norteavam e limitavam as relações entre patronos e artistas. Portanto, toda produção artística era colaborativa no Renascimento, pois “a produção da maioria das grandes obras de arte e complexos artísticos, era em grande parte uma questão de um coletivo de trabalho multimembro” (Wackernagel, 1981, p. 313). Porém, isso não significa que os “créditos” fossem dados a todos os envolvidos no processo de criação. Geralmente, o artista “chefe” do ateliê era quem assinava a obra, mesmo que não tivesse participado da execução da obra. Isso ocorria porque supervisionar, esboçar, avaliar e orientar também eram considerados elementos importantes de participação, além dos aspectos práticos e operacionais.
Michael Baxandall aborda as relações comerciais entre artistas e patronos, destacando a dinâmica interativa resultante desse contato, que propiciava benefícios mútuos às partes envolvidas. No século XV, observamos uma relação social no mundo da arte na qual mecenas e artistas “agiam de acordo com as instituições e convenções comerciais, religiosas, perceptivas, sociais”, conforme ressalta Baxandall (1991, p.11). Nesse contexto, a “melhor pintura produzida no século XV era realizada sob encomenda por um cliente que exigia sua execução conforme suas especificações” (Ibidem). De acordo com Wackernagel, a vontade individual era limitada pelo interesse coletivo, que tem como norte dois fatores principais: o contrato e a orientação do mestre do ateliê em questão. Considerando uma hierarquia de vontades, no topo da pirâmide estavam os mecenas, patronos e ordens religiosas, enquanto abaixo deles se encontravam, respectivamente, mestre, aprendizes e ajudantes.
O papel do Mestre do ateliê, envolve a gestão das atividades dentro do ateliê, incluindo tarefas burocráticas, atendimento às demandas, direcionamento dos trabalhos e a finalização de detalhes, todas estas são responsabilidades esperadas dele. No entanto, no que diz respeito às funções dos aprendizes e ajudantes, é importante abordar esses dois papéis distintos. O aprendiz é o aluno ou pupilo que reside no ateliê do mestre da oficina, e sua finalidade é estudar e trabalhar para se capacitar como artista no futuro. Caso tenha sucesso, ele poderá eventualmente abrir e gerenciar seu próprio ateliê. Geralmente, esses aprendizes vêm de famílias abastadas ou com recursos financeiros que podem patrocinar a formação de seus filhos. O período de aprendizado do aluno depende de diversos fatores, incluindo seu desempenho pessoal, a aprovação do seu trabalho pelo mestre e, finalmente, a avaliação favorável da guilda em relação a alguma obra submetida anteriormente. De acordo Wackernagel, em média, o tempo de aprendizado costuma ser de cerca de doze anos (Wackernagel; Luchs, 1981, p. 330).
No que diz respeito ao papel dos ajudantes, é importante ressaltar que muitas vezes suas funções se entrelaçam com as dos aprendizes, uma vez que, em um processo de trabalho coletivo que abrange várias etapas, as pessoas ocasionalmente realizam tarefas de forma intercambiável. “(...) a passagem de aluno a auxiliar ocorreu em uma transição suave; pois mesmo o aluno, quase desde o início, em certo sentido já desempenhava funções de assistente ao mesmo tempo” (Ibidem, p. 333). No entanto, a distinção entre as funções de aprendiz e ajudante reside no propósito dessas funções. Conforme mencionado anteriormente, o aprendiz busca adquirir conhecimento para se tornar um artista, enquanto o ajudante desempenha um papel de suporte para que os objetivos do aprendiz e do mestre sejam alcançados. Isso envolve tarefas como preparar tintas, organizar e higienizar a bottega, comprar suprimentos, dentre outras responsabilidades. Em alguns aspectos, o papel do ajudante se assemelha ao de um servo, pois quando o mestre se desloca de um local para outro, esses ajudantes muitas vezes são compelidos a acompanhá-lo, uma vez que dependem financeiramente dessa relação. Por outro lado, o aprendiz nem sempre se sente obrigado da mesma maneira, pois ele paga por esses serviços e tem a liberdade de procurar outro mestre se suas expectativas não forem atendidas.
Leonardo teve um ateliê em Milão que acolheu diversos artistas, alguns dos quais desempenharam o papel tradicional de aprendizes. Outros entraram em sua bottega como colaboradores, indo e vindo conforme seu desejo individual e curiosidade. No entanto, como se consolidou posteriormente, a afirmação de que Leonardo teria criado não apenas um ateliê de arte com todos os artistas lombardos mencionados, mas também teria estabelecido e liderado uma Academia de Arte em Milão ajudou a promover a imagem preconcebida de uma hierarquia intelectual e artística entre Leonardo e os artistas lombardos. Em 2008, a autora Jill Pederson conduziu uma extensa pesquisa com base nos vestígios dessa suposta “Academia de Leonardo” em Milão.
Essa Academia de Arte em Milão não existiu formalmente ou burocraticamente; ao contrário, “a academia milanesa seguiu o mesmo princípio básico de troca dinâmica e entreteve interesses e atividades filosóficas semelhantes” (Pederson, 2008, p. 451). Entre os membros que faziam parte desse grupo fluido, nomes proeminentes se destacaram, incluindo Leonardo e Bramante. Pederson argumenta que há um conjunto considerável de evidências que sustentam a existência da academia, e “embora essas fontes visuais e textuais não pintem um quadro coerente da academia, elas certamente indicam que Leonardo participou de um círculo intelectual ativo e fortemente conectado” (Ibidem). Jill Pederson, ao discutir a Academia de Leonardo em Milão, especifica que nesse círculo, ocupado por figuras notáveis da época no campo artístico, intelectual e filosófico, não havia necessariamente uma figura central ou reuniões formais entre os membros; em vez disso, era um círculo de debates guiado por interesses em comuns compartilhados pelos participantes (Ibidem). Não há evidências de que Leonardo tenha fundado tal academia, uma vez que esse círculo já existia antes da chegada de Leonardo da Vinci a Milão. Pederson também sugere que a academia provavelmente adotou o nome de Leonardo como forma de se identificar devido à fama póstuma de Leonardo (Ibidem).
A afirmação de Pederson traz à tona dois pontos cruciais, pois, ela nos faz questionar a criação e recriação da imagem de Leonardo como uma figura central e determinante da cultura milanesa, alguém que teria orientado, coordenado e liderado um movimento artístico. Isso é extremamente controverso quando consideramos o contexto colaborativo dos ateliês e a evidência visual de artistas lombardos realizando trabalhos que não se alinham com o estilo de Leonardo, além de aceitarem encomendas independentes sem nenhuma ligação com o mestre florentino.
Além do mais, Leonardo como um indivíduo preocupado em compartilhar conhecimento e aprender com os intelectuais ao seu redor. Isso é evidenciado pelo seu lado científico, que se desenvolveu consideravelmente em Milão, como demonstram seus avançados desenhos preparatórios e estudos em diversas áreas do conhecimento. Isso sugere que Leonardo via naquele círculo intelectual milanês uma oportunidade de aprendizado e contribuição intelectual. Conforme Walter Isaacson, Milão foi o local onde Leonardo mais trabalhou e desenvolveu suas pesquisas. Embora vários fatores possam ter influenciado esse avanço, como um patrono consistente e a garantia de uma renda estável, acreditamos que a rica rede artística da corte sforzesca desempenhou um papel fundamental. A corte atraiu artistas de diversas partes da Europa, proporcionando uma diversidade que não pode ser subestimada.
Sara Tatiane de Jesus
Universidade Federal de Minas Gerais
16 de maio de 2025
Parte desta analise faz parte da dissertação intitulada: Os artistas Lombardos: Dinâmicas Colaborativas em Milão no Século XV-XVI na Corte Sforzesca disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/79057/4/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Sara_Tatiane%20vers%C3%A3o%20final%20reposit%C3%B3rio.pdf.
KEMP, Martin. Leonardo da Vinci: the marvellous works of nature and man. Oxford: Oxford University Press, 2007.
AGOSTI, Barbara. Michelangelo. São Paulo: Ed. Abril Coleções, 2011.
WACKERNAGEL, Martin; LUCHS, Alison. The world of the Florentine Renaissance artist: projects and patrons, workshop and art market. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981.
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
WACKERNAGEL, Martin; LUCHS, Alison. The world of the Florentine Renaissance artist: projects and patrons, workshop and art market. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981.
HALE, John R. Dicionário do Renascimento italiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
PEDERSON, Jill. Isola beata de Henrico Boscano: novas evidências para a Academia Leonardo da Vinci na Milão renascentista. Estudos do Renascimento, v. 22, n. 4, p. 450-475, 2008.