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Warburg e Renascimentos
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Melancolia I e a natureza da imagem no Renascimento
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Albrecht Dürer. Melancolia I (1514).
Em uma postura contemplativa, uma figura angélica se senta diante de um edifício. Ao seu redor, uma série de ferramentas está disposta: um compasso, uma esfera, um poliedro, serra, pregos, entre outros instrumentos de carpintaria, objetos ligados à geometria e às artes mecânicas. Penduradas à figura estão um molho de chaves e uma bolsa, referências ao poder e à riqueza. Na parede, são fixadas uma balança, uma ampulheta e um sino, instrumentos de medida do tempo e da matéria, flanqueados por um quadrado mágico de Júpiter gravado sobre a parede. Ao lado da protagonista, um putto senta-se sobre uma roda, tendo em suas mãos uma placa de cobre com um buril, elementos utilizados no processo de gravação. Ao fundo, um morcego segura um estandarte que dá nome à gravura, atrás do qual uma paisagem apresenta um cometa que ilumina um céu abstrato, circunscrito por um arco íris.
Elaborada em 1514 por Albrecht Dürer (1471-1528), Melancolia I continua a despertar o interesse de incontáveis estudiosos e uma quantidade igualmente inumerável de estudos. Seu significado preciso (se é que ele exista), contudo, permanece enigmático, assim como a própria natureza ou finalidade da imagem, embora certos elementos tenham se tornado consensuais na historiografia da arte. Ainda no século XVI, a gravura encontrou uma repercussão considerável. Para o humanista germânico Joachim Camerarius (1500-1574), o primeiro intérprete conhecido da obra de Dürer, ela mostra como a mente melancólica, em sua busca por compreender todas as coisas, acaba sendo levada a absurdos. Alguns anos mais tarde, Giorgio Vasari (1511-1574) descreveria a gravura como uma obra que maravilhou todo o mundo. Estudos sobre a gravura se proliferaram no curso do século XX, seguindo uma trilha aberta pelas publicações dedicadas à obra pelo historiador germânico Karl Giehlow (1863-1913), na forma de dois extensos artigos escritos entre 1903 e 1904, situando a obra no contexto do interesse pela astrologia e hieroglífica na corte de Maximiliano I em Viena.
Para o autor, a imagem representa um mosaico erudito destes interesses, retratando o temperamento melancólico em seus aspectos positivos e negativos em perfeito equilíbrio, nomeadamente, o potencial do gênio em elevar-se pela inspiração divina ou encontrar seu declínio nas trevas da loucura, leitura que considera o artista como um grande pensador especulativo. No ano seguinte, Heinrich Wölfflin (1864-1945), em termos semelhantes, considerou a gravura como uma alegoria do pensamento especulativo.
Seguindo a trilha aberta pelos historiadores do círculo de Viena, Erwin Panofsky (1892-1968) e Fritz Saxl (1890-1948) publicariam o primeiro de de uma série de estudos dedicados à gravura, definindo os contornos gerais (ainda vigentes) que norteariam diversas interpretações. Após a publicação conjunta de 1923, intitulada Dürers "Melencolia I": eine quellen- und typengeschichtliche Untersuchung, propondo “uma investigação sobre suas fontes e tipologia histórica”, o estudo seria retomado por Panofsky em sua monografia sobre Albrecht Dürer, publicada em inglês em 1943, quando o historiador integrou o Institute of Advanced Study de Princeton e, finalmente, na monumental Saturn and Melancholy, publicada junto de Saxl e do historiador da filosofia Raymond Klibansky (1905-2005) em 1964. A extraordinária erudição e capacidade de penetração do texto o transformaram em uma fonte incontornável para o estudo da teoria humoral e suas expressões visuais no curso da história.
Como Panofsky demonstra, Dürer recorre ao repertório da antiga teoria psicossomática dos humores desenvolvida na Antiguidade a partir dos escritos de Hipócrates (ca. 460-370 a. C.) e Galeno (129-216 d. C.). Segundo este sistema, conhecido como teoria dos Quatro Humores, o corpo humano contem quatro fluidos ou substâncias, cujo equilíbrio condicionaria tanto o funcionamento natural do corpo, quanto da mente, definindo diferentes tipos de personalidade. Assim, o predomínio da bile negra no corpo seria responsável pelo temperamento melancólico; o fleuma, do humor fleumático; da bile amarela, do colérico; e do sangue, do sanguíneo.
Este sistema também estabelecia ligações com os quatro elementos, portanto, assumindo, desde o início, um significado macrocósmico: o humor melancólico seria ligado à terra; colérico, ao fogo; o sanguíneo, à água; o fleumático, ao ar. Finalmente, nos últimos anos da Antiguidade, a teoria humoral seria definitivamente vinculada à filosofia natural (como as estações e idades do homem) e, mais tarde, entre os astrólogos árabes do século IX, aos planetas, de modo que o humor melancólico passou a ser atribuído à influência de Saturno; o sanguíneo a Júpiter; o colérico a Marte; e o fleumático a Lua ou a Vênus.
Segundo a teoria humoral tradicional, difundida na Idade Média, os melancólicos eram abatidos pela tristeza e destinados ao infortúnio, à pobreza e condenados às mais servis e indignas atividades, como a de pedreiro, camponês, jardineiro, um homem adoecido, entre outros, cuja iconografia se tornou conhecida como a das “Crianças dos Planetas”, celebremente tratada por Aby Warburg em seus estudos sobre arte renascentista. No entanto, esta visão negativa da melancolia seria paralelizada por uma outra, a qual não apenas reabilitaria o humor saturnino como positivo, mas como, em realidade, o mais elevado dentre todos. Este ponto de vista seria promovido pelos Problemata, texto escrito e compilado entre o período helenístico e os últimos anos da Antiguidade, falsamente atribuído a Aristóteles. O autor vincula a bile negra à teoria platônica dos furores, postulando que o humor melancólico seria responsável por habilidades e dons extraordinários, além de arrebatamento e revelações divinas, partilhados por grandes homens e heróis mitológicos, incluindo Hércules, Ajax, Empédocles e Platão. Esta visão, embora não fosse desconhecida durante a Idade Média, encontrou terreno fértil entre os neoplatônicos florentinos, sendo explorada no paradigmático De vita triplici (1489) de Marsilio Ficino (1433-1499), tratado de magia astrológica destinado à preservação da saúde dos estudiosos, naturalmente inclinados à melancolia (como o próprio Ficino), uma das principais fontes da gravura de Dürer.
Panofsky identifica uma fonte adicional de importância ainda mais relevante, o mago germânico Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535). Na versão preliminar (escrita por volta de 1510) de seu monumental De occulta philosophia libri tres, publicado em 1533, Agrippa parte dos mesmos contornos ficinianos e descreve três meios pelos quais o furor melancólico provoca efeitos maravilhosos, por meio da possessão de demônios celestes que ocupam o corpo humano: pela imaginação, pela razão e pela mente. O primeiro deles, para o historiador, se refere diretamente à gravura düreriana, (do qual deriva seu título, Melancolia I) garantindo habilidades extraordinárias nas artes manuais, como a pintura, arquitetura e demais artes. Para Panofsky, que recorre a uma verdadeira arqueologia da gravura e de seus elementos, Dürer efetua uma transformação iconológica, unificando as perspectivas antagônicas sobre o humor melancólico à iconografia medieval da personificação da Geometria.
Panofsky, todavia, interpreta a gravura em termos trágicos. Ela representaria a frustração do gênio inspirado, incapaz de atingir o esclarecimento que busca com obsessão. Para o autor, as asas do anjo representam as aspirações do gênio que, inertes, causam a condição melancólica. A gravura refletiria, portanto, o sofrimento do gênio criativo incapaz de atingir suas ambições devido à limitação de suas condições materiais, sendo abatida pela melancolia resultante desta incapacidade. A leitura panofskiana encontrou críticas vigorosas. Uma das mais incisivas e pertinentes foi fornecida por Frances Yates, pioneira no estudo do esoterismo ocidental e também vinculada ao Warburg Institute. Como pontua a autora, Panofsky ironicamente negligencia as implicações da filosofia oculta renascentista em sua leitura “romântica” reminiscente do neokantismo novecentista ao qual o historiador subscrevia por meio de sua associação a Ernest Cassirer (1874-1945). Para a autora, a gravura não mostra o fracasso do gênio melancólico, mas seu arrebatamento inspirado, reforçado pelo cachorro subnutrido, simbolizando a mortificação dos sentidos, condição para a iluminação espiritual.
A influente leitura Panofskiana, como observa Mitchell B. Merback, surpreende por distanciar-se de temas e elementos que constituíam o legado do Warburg Institute, incluindo fatores fundamentais da filosofia e da psicologia renascentistas como a teurgia, o neoplatonismo, a magia, a kabbalah, a bruxaria e o oculto. Mesmo nos diversos estudos em que Panofsky trata da influência do neoplatonismo nas artes visuais, o historiador se certificaria de, cuidadosamente, excluir seus elementos mágicos e extáticos, restringindo esta repercussão ao campo neutro e intelectual da alegoria. De fato, estas preocupações com as forças “irracionais”, demoníacas e “dionisíacas” na cultura europeia que guiaram as preocupações de Warburg, fundador do instituto. As leituras dirigidas à gravura compartilham, deste modo, a consideração da mesma como um símbolo ou alegoria que deve ser racionalmente decifrada. Mais recentemente, entretanto, novas abordagens postulam novos modos de ver a obra, não apenas como um quebra-cabeça estéril a ser decifrado intelectualmente pelo historiador, mas como um elemento ativo capaz de influenciar o funcionamento cognitivo do observador, impulsionando um “movimento da alma”, uma noção tradicional presente na retórica, poesia, pintura e medicina renascentistas.
Nesta linha, para Merback, a obra pode ter sido elaborada pelo artista como um elemento terapêutico, um amuleto capaz de acalmar as paixões, restaurar e equilibrar a saúde do observador. Sua interpretação alinha-se com novos estudos e abordagens acerca da cultura e da arte do Renascimento. Por um lado, retoma a sensibilidade warburguiana ao considerar, livre de condicionantes teóricos reducionistas, o enquadramento cultural do período e sua crença no potencial ativo das imagens, seus elementos subterrâneos e “fantasmas”, em um momento ainda seguro do processo de “desencantamento” que se instalaria com os próximos séculos. Por outro lado, tal visão encontra respaldo no estabelecimento do esoterismo ocidental como campo autônomo de investigação científica, com o qual Yates contribuiu de modo decisivo.
Analisadas em conjunto, as duas abordagens fornecem um novo entendimento sobre como as imagens eram concebidas, considerando a visão de um mundo compreendido como uma complexa “floresta de símbolos” cuja influência no mundo é ativa e inexorável, uma concepção que permeou uma multiplicidade de campos ligados às artes visuais e à filosofia oculta no Renascimento. Segundo esta via, é possível que Melancolia I possa ter sido executada como um talismã, destinado a temperar os efeitos negativos dos influxos saturninos pela combinação com a influência jupteriana, registrada pelo quadrado mágico que acompanha a figura. Neste sentido, as novas interpretações suscitadas pela gravura de Dürer exemplificam, in nuce, as transformações pelas quais a própria disciplina tem passado. A receptividade a novos campos epistemológicos e abordagens interdisciplinares inovadoras possibilita uma compreensão mais profunda e ampla do objeto de estudo, além de fornecer novas respostas e questionamentos acerca do passado e de seus vestígios.
Thainan Noronha de Andrade
Universidade Federal de São Paulo
30 de junho de 2025
AGRIPPA, Heinrich Cornelius. De occulta philosophia libri tres. Edited by Perroni Campagni. Leiden; New York: E.J. Brill, 1992.
KLIBANKSY, Raymond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Saturn and Melancholy. Nendeln: Kraus Reprint, 1979.
MERBACK, Mitchell B. Perfection's Therapy: An Essay on Albrecht Dürer's Melencolia I. New York: Zone Books, 2017.
PSEUDO-ARISTÓTELES. Problems II: Books XXII – XXXVIII. With an English translation by W. S. Hett. London; Cambridge, MA: William Heinemann LTD; Harvard University Press, 1957.
VASARI, Giorgio; MILANESI, Gaetano. Le vite de' più eccellenti pittori, scultori ed architettori. In Firenze: G. C. Sansoni, 1878, 8 v.
YATES, Frances Amelia. The Occult Philosophy in the Elizabethan age. London and New York: Routledge, 2001. Routledge Classics.